quarta-feira, maio 25, 2005

Na Borda do Penhasco

Sentado na borda do penhasco, as pernas balouçando sobre o abismo, pensava, talvez na sua vida passada, ou sonhava, talvez num futuro quase presente. Um ar absorto, ausente, num rosto angular. Naquele local a natureza cálida, pesada, como que convidava a um olhar interior. Aqui, a solidão era necessária, uma conversa, mesmo que a dois seria uma profanação, maior que a destruição de um templo. Numa garganta apertada com paredes a pique, o ribeiro tinha aberto o seu leito, pacientemente, séculos e séculos a fio, num granito negro e branco, para depois se lançar no espaço, quase com fúria, indo cair metros abaixo, aí se acalmando, espraiando-se numa vasta caldeira, antes de retomar a sua busca de horizontes mais largos. Com menos paciência que o ribeiro, alguém tinha construído, no mesmo granito, uma ponte. Alcandorada na garganta, permitia a passagem para alguma aldeia perdida na serra e um abraço entre dois caminhos, quase veredas, que vinham e iam para longe, para lá da solidão.
Quem era aquele homem aquele homem, sentado na borda do penhasco, de ar absorto e ausente, balouçando as pernas no abismo? Em que pensava ele? Com quem sonhava ele?
Cá em baixo, junto ao ribeiro, no local em que ele descansava antes de novas viagens, fervilhava a vida, libelinhas zuniam, de vez em quando, nas moitas junto ás margens, um restolhar dava conta de alguma passagem mais possante, nas águas frescas, os corpos fusiformes dos peixes deixavam relâmpagos de prata no olhar.
Lá em cima, continuava o mesmo homem, na sua solidão sonhadora, quase mística, quase veneradora, no rosto um ar ausente… Quem era aquele homem, que fazia ele ali, no meio daquela serra onde o ar cálido de uma manhã de verão, trazia promessas de um meio-dia abrasador?
No ar voltejavam andorinhas, num bailado estranho, num ritmo ora rápido, como se fugindo, ora mais lento, como quem aprecia a paisagem. Mais acima, pairava numa vigilância permanente, uma águia.
Então o homem deixou de balançar as pernas, deixou de estar absorto e sorriu. Calmamente ergueu-se do seu poiso, o abismo negro e branco a seus pés, vertiginoso, parecia ainda mais fundo. Sempre a sorrir, o homem olhou para o céu e viu a águia, pairando num voo, sempre circular, milenar, um voo que todas as águias fazem desde o nascer dos tempos. Viu também as andorinhas, ora nervosas, ora calmas. Olhou para baixo, sorrindo ainda, apreciou os dorsos dos peixes prateados, as libelinhas, verdes, azuis, arco-íris voando sobre as águas.
O homem deu dois passos atrás, de um saco retirou uma máquina fotográfica e começou, calmamente, a fotografar tudo o que via...

segunda-feira, maio 23, 2005

Quixotes ou Sanchos?

D. Quixote era um fidalgote de provincia; toda a gente o sabe...
Mas era um valente, porque lutou pelo que queria e mesmo não sabendo que o gigante não era mais do que um moinho, não vacilou!
Sancho Pança, esse achava que sabia mas queria mais do que sabia, afinal a sina dos sábios...
E nós? Seremos valentes como D. Quixote ou sábios como Sancho Pança?
Lutaremos por aquilo que achamos que merecemos ou quereremos mais do que aquilo que sabemos? Saberemos nós aquilo que merecemos ou temos aquilo que sabemos que não passa de uma cenoura que nem o burro do Sancho Pança aceitaria?
Afinal, queremos nós o quê? O amor próprio ou o governo de uma ilha?
De um lado a ilha que sabemos não existir, mas que procuramos até à irracionalidade, do outro lado o moinho, cujas velas nos derrubarão...
Sopra o Suão, nesta terra seca...

domingo, maio 22, 2005

O rapaz do tambor que queria ser general

Para a Carla d'Almeida Lopes

Chamava-se Ramiro, tinha um nome de nobre antigo, mas desde a mais tenra idade que se habituara a levantar, ainda a alba estava longe, para tratar dos animais da pequena quintarola que os seus pais traziam aforada, ali perto de Fetais dos Pretos, a meia légua do Sobral de Monte Agraço. Era um rapaz franzino, baixote, de tez muito escura, como a maioria dos habitantes do seu lugar, talvez descendentes de antigos escravos. Ramiro nunca se preocupara em saber essas coisas, só sabia que as pessoas de Fetais, ou melhor, dos outros Fetais, não gostavam muito deles. Na realidade havia quatro Fetais, o dos Pretos, o dos Carneiros, o de Nossa Senhora e a Zibreira de Fetais. O dos Pretos era o mais miserável de todos os Fetais e nele, todos sem excepção, homens, mulheres e crianças participavam do trabalho árduo, condição única de sobrevivência.
Ramiro tinha 7 anos, não tinha nem tempo nem consciência para reflectir sobre a sua condição. Repetia gestos seculares que lhe garantiam a vida, uma vida fechada num horizonte de pouco mais de uma légua. Uma vez por mês o mercado do Sobral, uma vez por ano a feira dos Santos à sombra da grande Igreja de santo Quintino. Talvez um dia uma viagem a Torres Vedras, Lisboa um sonho de uma vida. Ideias tinham. Que os animais também tinham gosto, uma vez que as suas vaquinhas gostavam mais do verde do prado de primavera, do que da palha do verão, que era português, embora não soubesse propriamente o que isso queria dizer, que o rei que ele imaginava portentoso, estaria ausente no Brasil (onde seria este Brasil?), que os franceses estavam cá!
Corria o ano de 1808, Junot permanecia em Lisboa, depois de o exército napoleónico ter invadido Portugal e a família real ter embarcado para o Brasil. O país dava voltas sobre voltas, mas a vida de Ramiro permanecia inalterada, como inalteradas ficam as velas de um moinho, por muito que o vento as faça voltear. Quando param permanecem iguais, mais estragadas apenas. Da capital chegavam notícias breves que em nada interessavam a Ramiro. Apenas os homens murmuravam entre si: que o francês já se tinha ido embora, que os ingleses também estavam cá. Ramiro continuava a mourejar todos os dias. Tinha para comer, pouco, mas tinha, tinha um tecto para o tapar à noite, as suas vaquinhas estavam vivas, era isso que lhe interessava, isso bastava-lhe.
Entretanto tinha nascido um irmãozito a Ramiro! Ele era o mais velho de cinco irmãos, agora seis. Segundo o costume da época, era preciso baptizar rapidamente o petiz. Havia uma capela nos Fetais de Nossa Senhora, mas nunca era utilizada pelos naturais de Fetais dos Pretos. Era portanto necessário ir rapidamente ao Sobral e fazer a cerimónia na Matriz. Assim, num Domingo, a família fez-se à estrada a caminho da vila. Tinham chegado ao cruzamento da Calçada, quando uma cavalgada lhes cortou, por instantes, o caminho. Eram soldados, uns vestidos de azul, outros de vermelho. O pai explicou a Ramiro, mais tarde, que os de azul eram portugueses, enquanto os de vermelho eram ingleses. Mas o que mais impressionou Ramiro, foi o primeiro dos cavaleiros. Alto, casaca vermelha com dragonas douradas, longo sabre com guardas douradas, embebido numa bainha de veludo azul-escuro debruado a oiro, duas pistolas de pederneira em lindíssimos coldres presos a boldriés a tiracolo, idênticos à bainha do sabre e, na cabeça, uma barretina negra com plumas vermelhas que esvoaçavam ao vento. Na lapela da casaca brilhavam rosetas e barretas, condecorações de vários feitios e cores. Ramiro quedou-se tão embasbacado que só um calduço do pai o levou a recomeçar a andar, quando a cavalgada passou. Já na vila a sua curiosidade foi finalmente satisfeita. Tratava-se de Guilherme Carr Beresford, general inglês e do seu estado-maior. Na igreja, olhando solenemente para o altar-mor enquanto o seu irmãozinho era baptizado, Ramiro prometeu a si próprio – “um dia, hei-de ser general!”…

Um ano passou sobre este episódio. Notícias terríveis chegavam à aldeia. Notícias de centenas de mortes no Porto e por todo o norte do país. E grandes transformações tinham também chegado à região do Sobral. Dezenas de aldeias do lado de Torres estavam a ser abandonadas e as suas gentes vinham para ali. Obras estavam a ser feitas na Senhora do Socorro e ali perto da Vila. A pouco e pouco, um enorme complexo militar nascia, uma espécie de grande muralha de terra e pedra nascia, dizia-se para proteger Lisboa dos franceses, desde o Vimeiro até ao Tejo.
Um dia, um oficial bonacheirão apareceu em Fetais dos pretos com uma carroça e um grupo de soldados, Na carroça um grupo de miúdos com ar assustado. Com um vozeirão enorme, o oficial mandou “prantar toda a canalha” à sua frente! Olhou os gaiatos, um a um, até que atentou em Ramiro. A um gesto seu, o garoto foi agarrado por dois soldados. O oficial clamou pelo pai, disse-lhe qualquer ao ouvido e Ramiro foi içado para a carroça. Em estado de choque, Ramiro andou o resto do dia de aldeia em aldeia, com o grupo de miúdos a avolumar-se dentro da carroça e, era já noitinha, quando chegou a um local (mais tarde percebeu ser o Monte de Nossa Senhora do Socorro, onde lhe deram um pedaço de pão escuro e uma tigela de caldo quente e o mandaram dormir em cima de um monte de palha, dentro de um pardieiro.
Afinal, o garoto que queria ser general ia ser tambor. Os meses seguintes passou-os a aprender a marchar, a tocar o tambor e os ritmos necessários a comunicar com as tropas em campanha!
Em Janeiro de 1810, Ramiro foi levado para o Forte Grande do Sobral de Monte Agraço, uma das praças fortes das linhas de Torres e aí voltou a encontrar o seu general Beresford. Agora já não lhe pareceu tão alto, mas mesmo assim era um homem imponente, com as suas longas pernas, quase da altura do rapaz do tambor. A vida militar nem era muito dura para Ramiro. Algumas marchas entre o forte e alguns fortins das proximidades e pouco mais. Mas mesmo assim, um dia adoeceu. Eram as febres malinas, explicaram os físicos militares. Ramiro ficou dias deitado num catre, no interior de uma grande tenda, cada vez definhando mais. Pela primeira vez pensou que há muito que não via os pais, os irmãos e as suas vaquinhas, lá em Fetais dos Pretos, afinal ali tão perto. Cada vez se sentia mais fraco, a ponto de um outro tambor lhe ter que levar a malga do caldo aos lábios quentes e endurecidos.
Um dia, na tenda entraram dois homens. Um padre e o próprio general Beresford. O padre perguntou a Ramiro se queria alguma coisa. Com a boca entorpecida pela febre, o petiz conseguiu balbuciar – “quero ser general”. Uma breve troca de palavras entre os dois adultos e o general, num movimento solene, retirou uma das suas rosetas da lapela e colocou-a em cima do peito arfante do tambor. Ramiro, que começava a sentir uma força estranha a toldar-lhe os olhos, deu por si a pensar, como num sonho – “sou general”…

Amadora, 21 de Maio de 2005

A lua estranha

E aquela lua tão estranha feria-me então os olhos, como hoje me fere as lembranças. Lembranças de noites assim. Lembranças de noites em que descíamos o rio, os barcos ajoujados de mercadorias que venderíamos no mercado de manhãzinha. Noites em que o ar gélido que subia das águas, entrava por entre as nossas roupas e nos mordia o corpo. Dentadas que picavam como agulhas e nos arrancavam soluços. E aquela luz da lua, tão estranha, nada nos aquecia. Porque é que a luz da lua não nos aquece? Mesmo a luz desta lua tão estranha? Porquê? Mas na altura não fazia perguntas! Calava-as na garganta, como quem cala um suspiro. Por vezes cerrava os olhos. Custava-me ver a lua.

sexta-feira, maio 20, 2005

DEUSES E DIABRETES

Hoje vou falar da minha religião, dos deuses em que acredito, dos mitos que talvez eu tenha inventado… è verdade, os deuses de que vou falar, fui eu que os inventei, fui eu que os criei! Aliás, hoje é a primeira vez que falo nesta religião, a outras pessoas. Sou assim como que um patriarca, embora isso me coloque um problema: Será que para ser um patriarca da religião que eu criei, eu próprio terei que me criar também?

Vou agora apresentar a minha criação. São estes os meus deuses: Or, pai dos deuses e Deus do Absoluto; Ar, companheira de Or, por ele criada, Deusa da Perfeição e da Imaginação; Er, Deusa da Harmonia, nascida da ligação do Absoluto, com a Perfeição; Ir, Deus do Valor e do que é humano; Ur, Deus do Tempo e da Memória; Eri, Deusa da Beleza; Iri, Deusa da Alegria e do Êxtase.

Na mitologia desta religião, Or criou os deuses, ele que existia já no absoluto, no todo que sempre existiu em mim, criou também as coisas, mas porque os outros deuses são também criadores, ele é, então, a criação. Ar procura sempre a perfeição, está sempre perto dela, mas a sua imaginação, está sempre mais à frente! Foi por isso que surgiu Er, quando Or colocou o absoluto, entre a perfeição e a imaginação. Os outros deuses, todos irmãos da harmonia, representam o ciclo da vida. Ir, o valor e o que é humano, pertence ao que é criado. Ele é a essência do que é criado. O tempo e a memória, Ur, enforma esta religião, mas é também ele que a modifica. E o que seria uma religião sem beleza, sem alegria e contemplação, sem Eri e sem Iri? Mas eu também tenho um papel importante nesta religião. Eu sou o espaço, o lugar onde tudo acontece. Eu sou o criador e o criado, é difícil distinguir entre a minha criação e eu próprio. Como destrinçar a matéria da ideia dessa matéria?

Mas na mitologia desta religião, falta falar daqueles a quem eu chamei de diabretes. Os diabretes são meus. Procuram sempre ocupar o espaço, pertencer a outro tempo, têm prazer na procura dos contrários, não são destruidores mas deformam. São engraçados os meus diabretes, se Ir valoriza, logo eles procuram defeitos; se encontram Ar, na sua eterna procura da perfeição, logo eles a tentam fazer parar; quando falam com Er, procuram, sempre, pontos de desequilíbrio no seu discurso; enfim, uns verdadeiros diabretes… Contudo , fazem bem a esta religião, têm nela um lugar próprio. São eles que mantêm o equilíbrio de todo este processo. O seu numero não o sei, nunca os consegui contar.

Para terminar, deixem-me contar um dos mitos desta religião, o mito da memória. Um dia, estava Ur num qualquer tempo, olhando para uma obra de Er. Era de uma harmonia espantosa, carregada de influências de Eri e de Iri. Bela, alegre, divertida… Concerteza Ir não a desprezaria, nem Ar a consideraria longe da perfeição. Ur só tinha que lhe fixar um tempo. Mas como escolher esse tempo e deixar os tempos vindouros sem aquela obra? As hesitações de Ur eram tantas que resolveu pedir ajuda a Or.

À conversa de Ur com Or assistiram os diabretes, que, como era seu hábito, por vezes irritante, se meteram no diálogo entre os dois deuses, cada um apontando uma solução diferente. Para a mesma obra, os diabretes queriam um tempo diferente, propunham uma beleza diferente, uma alegria diferente, um valor diferente, no fundo uma ideia diferente! Mas como, se a obra permaneceria, na sua forma a mesma? Or e Ur já estavam a ficar irritados com as tropelias dos diabretes. Como poderiam eles aceitar, no seio do absoluto, tempos diferentes, que mantinham uma obra na sua essência formal, mas a modificavam na sua essência ideal?

De repente Or e Ur compreenderam o que os diabretes lhes estavam a tentar demonstrar - todos os tempos permanecem no absoluto, todas as obras são geradas num tempo e perpassam os outros tempos, todas as ideias são absorvidas pelos tempos - as ideias são geradas num tempo e ao passarem a outro tempo, transformam-se, mas mantêm a sua essência formal, são agora memória materializada na obra. Pertencem ao absoluto e por isso a sua forma é a mesma, mas nem o tempo escapa aos diabretes. Enquanto os Deuses, por estarem fora do tempo, têm dificuldade em verificar a metamorfose das ideias, porque os tempos mudam. Só os diabretes alcançavam esta possibilidade - a possibilidade da memória - que se não cria, ao menos recria!


Amadora, 98.12.06

O Tritão

Quando na madrugada dos tempos os Deuses dominavam o mundo e os homens, mas estes deixaram de lhes obedecer, tornando o mundo num lugar de dor, manchado de sangue pela guerra e pelo ódio, Júpiter decidiu castiga-los. Convocou o seu irmão Neptuno, Deus do Mar e das Águas e este soltou os rios e lançou-os contra a Terra ao mesmo tempo que com um terramoto lançou as marés contra as praias. Deu-se um terrível dilúvio e em pouco tempo toda a terra estava coberta por água, menos Pirra e Deucalião, onde se iria fundar uma nova raça de homens, que iriam repovoar a Terra.

Então Neptuno chamou o seu filho Tritão e este, soprando na sua concha dominou as águas, que voltaram ao seu meio natural.

O Tritão é assim, aquele que equilibra os dois meios, a terra e a água. Mas ai dos homens que não obedeçam ao seu pai. A sua concha, que serviu para acalmar as águas, também servirá para as soltar novamente!!!

A Viagem

A Viagem (o início – a mancha absorta)


As cores misturam-se, saltam em frente dos olhos, assaltam-nos os olhos. Ficamos privados do ver, porque ver é conhecer. Doem-me os olhos. Doem-me as cores, dói-me essa mancha, absorta. Viajo sem companhia, viajo pelo tempo, mas não tenho o tempo. Ter o tempo é parar, e numa viagem não devemos parar, mesmo que nos doa os olhos. Olho pela janela e não vejo, apenas olho e pressinto uma visão dorida. Não tenho tempo, não tenho olhos, não tenho os olhos do tempo.
Aquela mancha vermelha, absorta, assaltou-me os olhos e deixou-me sem espaço. Viajo pelo espaço mas não o percebo. Quero apreender o espaço, um espaço velho, um espaço esconso que se fecha à medida que avanço na minha viagem. O espaço não me deixa ver o tempo. O espaço não me deixa ver o espaço. O espaço ignoto, rude, violento.
Violentam-me os olhos, as cores. Violentam-me os sentidos, as cores.
Porque é que viajo?
Doem-me os olhos ao iniciar esta viagem. Viajo sem tempo nem espaço, apenas uma mancha me persegue, uma mancha colorida, sangrenta, absorta…
Serei eu que viajo? Serão os meus olhos? Serão, decerto, todos os meus sentidos…
Inicio a viagem…

Cadáveres de mim


Viajo; como quem não quer olhar para trás.
Mas todos os futuros têm passados. Todas as vidas carregam consigo os seus mortos, aqueles mortos que nos servem de pontes para passarmos os rios que nos tolhem os passos. Eu carrego comigo, cadáveres! Cadáveres de mim. Estilhaços da minha vida, ruínas impenetráveis, como selvas, como castelos desencantados, protegidos por espinheiros que nos arrancam a pele e os sentidos.

Viajo; como quem não quer olhar para trás.
Insensato, trouxe comigo um esquife que não é “de ferro com embutidos de diamante”. Mas os nossos mortos carregam-se melhor aos ombros, à vista de toda a gente. Mas eu não quero mostrar os meus cadáveres, cadáveres de mim, cadáveres que, como num sortilégio de luz, brilham no escuro, fosfóricos, ridentes, pasmados.

Viajo e sou obrigado a olhar para trás.
Como um pastor em transumância, tomo conta dos meus cadáveres de mim. Eles são como esqueletos de um rebanho tresmalhado, arrogantes do seu futuro, no meu futuro…

Continuo a viagem…

A cidade melancólica



Cheguei à cidade. Diziam os antigos que quem visse a capital do Império, teria visto todas as outras cidades. Mas o que sabiam os antigos – lendas, fábulas, encantamentos, feitiços…

Cheguei à cidade. É uma cidade redonda, melancólica, baça. Entre as ruínas procuro vestígios do Império, ossadas brancas carcomidas pelo tempo.

Cheguei à cidade. Os caçadores abandonaram-na. É agora habitada por feiticeiras que procuram vestígios do Império, entre as ruínas. Ruínas quase homens, quase mulheres… queimadas e exangues.

Estou na cidade, entre os mortos que, ao peito, alimentam os vivos. Entes calcorreiam-na, luísas que sobem a calçada, num vai-vem cansado, constante, redondo. Agora doem-me outra vez os olhos e dói-me o ser! O ser eu, o ser que somos nós, daqui e do outro lado do espelho. Grito a dor. A minha dor humilhada, ofendida, fendida pelas lanças das feiticeiras bolorentas do Império. Sinto manar o meu sangue, em golfadas de espanto e saliva.

Deixo a cidade. Sou caçador, não posso pertencer à cidade. Abandono-a, como os meus pais. Só as feiticeiras ficam, e os entes cansados. Não encontrei vestígios do Império, só ossadas brancas, polidas pelo vento seco e morno… seco e morno… um vento melancólico…

Prossigo a viagem.

A viagem dos outros


Viajo no interior de uma redoma. Uma redoma que me tolhe os passos, que me impede os sonhos.

Preso neste mundo de faz-de-conta, procuro imaginar a viagem dos outros, nos seus sonhos, nos seus pesadelos, nas suas redomas cósmicas, nos seus gritos e êxtases…

Mas a minha redoma impede-me o ver, o sentir, o sonhar…

E na viagem dos outros procuro o meu eu, troco os destinos, vejo-me a partir, vejo-me a chegar, já não sei se parto, já não sei se quero chegar…


Se me encontro? Não sei… há uma inconsistência neste meu mundo em viagem, neste meu mundo em mudança que me impele ao desconhecido, ao não querer agarrar o olhar. Olho a viagem dos outros e a memória vai-se desvanecendo, como água na areia, como a bruma ao sol nascente… sinto o peso da memória, da memória dos outros, da viagem dos outros, dos sonhos dos outros…

Olho, mas não sei se quero olhar…

Procuro…

E continuo a viagem!

Última estação!


Cheguei ao fim da viagem (terei chegado?)!
Última estação, ponto de encontro de sonhos vagabundos, de memórias perdidas, de sentimentos que se fizeram pessoas.
E factos!
Não quero acabar a viagem, mas quero chegar ao fim.
Mas já não sei se quero. Deixo escorrer o sonho. Deixo que as memórias me trespassem, quais espadas de luz e deixo-me rodear de sentimentos que se fizeram pessoas, num burburinho comum ao fim de uma viagem.

Gente que parte, gente que chega, sonhos que deliram em encontros e desencontros.
Espreito. Quero ver a gente que parte e a gente que chega. Na bagagem memórias que levam e que trazem. Pesam-me as memórias, pesam-me os sentimentos, doem-me as feridas provocadas pelas espadas de luz.

A luz mana de mil feridas, arranhões provocados por espinhos com forma humana, demónios de mim. Eu sou o meu demónio principal e corro pela gare, como que vai encontrar os seus.
Será a luz humana?

Olho para a gare. Tão pouca gente vejo. Está quase vazia. Onde está a gente toda que comigo fez a viagem? Onde estão as memórias? E os sentimentos? Será tudo um sonho? Terá sido tudo um sonho?


Acabo a viagem (estarei a iniciar a viagem?)!

A Menina Vestida de Azul

(Escrito para a minha filha Marta)

Esta é a história de uma menina vestida de azul que gostava de cavalgar as nuvens. Todos os dias, quando acordava, a menina vestida de azul ia à já janela e olhava o céu. Se não via nenhuma nuvem, triste ficava, mas se algum farrapinho branco por ali andava, vestia-se à pressa e logo saía de casa. Chegada à rua, sentava-se no muro do jardim e, esperava, esperava, até que a nuvem a visse e descesse para a apanhar.
Muito gostava a menina de andar, lá no alto, a brincar. A nuvem corria, corria, saltava, e a menina ria, ria deliciada. Passava assim o dia e a menina até de comer se esquecia. Era uma sensação tão boa aquela. Lá do alto, montada na nuvem, a menina via as casas, os jardins, as pessoas, tão pequeninas que pareciam formigas e gritava e acenava – “Olá, estou aqui em cima, sou a menina vestida de azul, olá, ei… estou aqui, olhem cá para cima!!!”
Claro que a menina vestida de azul só fazia isto nos fins-de-semana e nas férias. No tempo de escola não podia cavalgar as nuvens. Tinha que aprender outras coisas. Bem, que lá em cima também aprendia muito! Por exemplo, o nome das nuvens. Sabias que há nuvens que se chamam cirros? E outras que se chamam cúmulos? E conhecia muitos pássaros que por ela passavam e metiam conversa. Gostava muito, sobretudo, de falar com as andorinhas que lhe contavam muitas coisas dos lugares onde passavam o Inverno… à custa de isto e de outras a menina de azul já conhecia muitas coisas…
Pois é, muito se divertia a menina vestida de azul a cavalgar as nuvens. E quando chegava cá abaixo, contava as suas aventuras aos amigos: “e fiz isto, e fiz aquilo, e voei aqui, e voei ali”, muito tinha ela para contar. Os amigos ouviam, ouviam, mas muitos franziam o nariz, outros coçavam a orelha – é difícil acreditar na menina de azul, mas eu sei que é verdade o que ela diz! O problema é que ninguém a consegue ver, montada numa nuvem! É que ela, como se veste de azul, confunde-se com o céu e não se nota lá em cima!
Olha, se tu quiseres também podes montar uma nuvem e voar. Faz assim, vais para o jardim e sentas-te, numa cadeira, no muro, no chão, onde quiseres. Depois fechas os olhos e pensas com muita força: “Anda nuvem, anda, vem-me buscar, quero voar, quero voar…”. Vais ver, daí a bocadinho já estás lá em cima, a saltar, a voar, basta só imaginar!!!


Amadora, 25 de Julho de 1994

O sexo dos anjos

Diz a lenda que, enquanto os otomanos conquistavam Bizâncio, os sábios da cidade discutiam qual seria o sexo dos anjos – bizantinices...

Hoje é uma discussão que deixou de ter interesse, quem quer saber o sexo dos anjos?
Mas a guerra continua, povos invadem povos, pessoas matam pessoas... Em nome de quê? Os interesses territoriais são disfarçados pelo nome de deuses, os interesses económicos, os interesses geoestratégicos, os interesses... Tudo interessa, até uma (im)provável humanitariedade serve para camuflar o verdadeiro sexo dos anjos, mas os da guerra – o PODER e o DINHEIRO! A fome de poder, eis o que move os senhores da guerra, ontem, enquanto Bizâncio caía, hoje, provavelmente amanhã!

E enquanto os sábios continuarem a discutir bizantinices, enquanto continuarem a prestar-se ao desenvolvimento de novas armas de suicídio em massa, não nos venham falar em desenvolvimento, em evolução, em humanidade, em solidariedade, em justiça, em valores, em princípios...

Os anjos da guerra têm dois sexos, são hermafroditas, auto-reproduzem-se, guerreiam-se a si próprios – Sadam e Bush são faces da mesma moeda, no fragor dos seus ritos de acasalamento queimam tudo o que está próximo, homens, mulheres, crianças, tudo é queimado em piras do tamanho do mundo. O seu bafo é pestilento, enquanto se auto-sodomizam...

Vamos continuar a discutir o sexo dos anjos?

Até quando?

A Lenda da velha, do monstro e do jovem

Há muito, muito tempo, ainda o mundo era uma criança, num longínquo reino, as gentes eram pasto do medo. Um feroz monstro, talvez um demónio, empestava as terras com o seu bafo, queimava as colheitas, secava o leite das mães!

E ninguém o conseguia matar. Foram chamados os mais valentes cavaleiros, os mais fortes guerreiros, mas só olhar para a besta era suficiente para ficarem gelados pelo medo. Os seus ventres eram rasgados, as suas cabeças decepadas pelas suas garras, como quem corta uma espiga com uma foice.

Já desesperavam as gentes, os pobres e os ricos, os fracos e os poderosos. Quem os poderia salvar?

Um dia chegou ao reino uma velha e pobre mulher. Envolta em trapos, do seu rosto só uma nesga se via, os seus olhos. Mas estes eram o contraste completo com a sua figura. Brilhantes e vivos, mais pareciam os olhos de uma criança curiosa. E mal entrou nas terras do reino foi dizendo, a quem a queria ouvir, que para matar o monstro tinha ela o remédio.

Aos ouvidos do rei da terra a arenga chegou. Desesperado mandou chamar a velha:
- Dizei velha, qual o remédio para matar o monstro
- Dilo-ei, meu senhor. Mas uma condição vos ponho.
- Qual?
- Trazei à minha presença sete jovens, dos mais formosos que existirem no vosso reino. Um deles casará comigo, mas só se o desejar. Trazei também um oleiro, ele é a chave para os vossos problemas. Quero também um salão onde ninguém me poderá incomodar.
E o rei assim fez. Sete jovens foram trazidos, qual deles o mais formoso. E veio o oleiro. Estranhamente os jovens sentiram-se enfeitiçados pelos olhos da velha, cada um deles julgou ali estar o amor da sua vida. A velha fechou-se então, com o oleiro, no salão e ali esteve, durante sete noites e sete dias. Quando as portas do salão se abriram os presentes puderam ver sete estátuas de cerâmica da velha e sete estátuas do monstro. Da velha, nem sinal e falou o oleiro:
- A velha mandou dizer que quem desejar casar com ela deve levar consigo uma estátua dela e do monstro. Na montanha deve construir um castelo e aguardar.
Os sete jovens ficaram confusos.
- Mas porquê?
- Não devem fazer perguntas, são livres de não o fazerem, mas para obter o que quereis, terão que obedecer! Quem não o quiser fazer que se vá já embora.
Um a um, os jovens viraram as costas e foram-se embora. Só um ficou, logo o mais jovem. E foi esse que partiu para a esforçada tarefa. Construir um castelo, para livrar o reino de um monstro e casar com uns olhos de feitiço.

Durante sete longos anos o jovem penou na montanha. Arrancou a pedra, construiu altas muralhas e no meio, uma torre. E todas as noites olhava para as duas estátuas de cerâmica e adormecia. Finalmente o castelo ficou pronto. Nessa noite, quando o jovem olhou para a estátua da velha deparou com uma linda jovem, só os olhos eram os da velha, negros e brilhantes.

- Vai, sobe ao alto da tua torre, prende a estátua do monstro o mais alto que puderes, deixa que a água da chuva lhe escorra a maldade e, assim como a água não correrá para dentro da torre, também o mal não entrará neste reino!

O jovem assim fez, subiu ao alto da torre e prendeu a estátua do monstro. Mas quis o destino, que mal o jovem tivesse acabado de prender a estátua, lhe tivesse falhado o pé e ele caísse da torre que com tanto esforço construiu.

Reza a lenda, que todos os anos, na noite de S. João, uma velha aparece na torre e amaldiçoa aquela estátua de cerâmica, ali dependurada.

O monstro? Esse desapareceu, como que por artes mágicas...

Carta ao Diogo

Olá Diogo:

Não sei se já me reconheces, provavelmente não.
Sou o teu tio João, o irmão da tua mãe. Pois, essa reconheces tu e bem.
Ainda estivemos juntos há pouco tempo, na casa dos avós, naquela noite em que tu berraste que nem um bezerro desmamado... pronto, está bem, não és nenhum bezerro e ainda não foste desmamado... está bem, não precisas fazer beicinho!
Sim, é isso mesmo, sou aquele maluco que esteve dez minutos a falar contigo e a dizer da da gu gu, ro ro, du, ga gu...
Pois, a figura que nós, os ditos adultos fazemos...
O que é que queres, és o meu único sobrinho, pelo menos do meu lado. Do outro lado tenho seis e um sobrinho-neto. Pois, já estou velho...
Mas, olha, também sou o teu único tio, por isso vais ter que aguentar...

Mas resolvi escrever-te por uma outra razão, provavelmente porque já não tenho capacidade de compreensão para algumas coisas que vão acontecendo neste mundo de adultos:
Sabes o que era uma ordália, claro que não sabes, pergunta estúpida a minha. Ordália era uma forma de administrar a justiça na Idade Média. Deixava-se a Deus a resposta para as dúvidas. Por exemplo, se uma mulher era acusada de adultério, era amarrada a uma cadeira e submergida na água gelada de um rio. Se a mulher sobrevivia, considerava-se que era mentira, se morria é porque era culpada. Mas a forma de ordália mais corrente, era a luta entre duas pessoas. O vencedor tinha a razão...

Tudo isto porque hoje ouvi um senhor ministro deste Portugal, onde nasceste há três meses, dizer uma coisa que tentarei repetir:
- “Portugal apoiou os vencedores, ou seja os que estão dentro da razão”
Assim mesmo!!!
Logo, esta guerra, a tua primeira guerra (salvo seja), foi uma ordália! Os vencedores têm razão!

Não Diogo, já não estamos na Idade Média, mas isso vais tu aprender mais à frente. Sim a História é memória, a memória dos homens. Mas parece que há momentos em que mais vale dizer “da da ru, da da gu, oh bru!!!”

Jinhos do teu tio
João

O Rato Roeu a Rolha da Garrafa do Rei d’Angola

Uma das minhas longínquas memórias de infância tem a ver com a minha vó Lisa, que me pedia, de vez em quando, para repetir um trava-línguas infantil. Dizia ela – “Vá João, diz lá, O rato roeu a rolha da garrafa do rei d’Angola”; e eu dizia sempre – “Não é de Angola vó, é da Rússia...”.

Não sei porquê, hoje lembrei-me da minha avó Elisa. Uma camponesa seca de carnes, rústica, cheia de força, uma moira de trabalho. O meu avô Francisco morreu, tinha a minha mãe 17 anos e o meu tio 24 e ela aguentou a família, como sabia, trabalhando. Quando passava férias com ela, lá na aldeia, costumava acordar pelas nove horas e já ela tinha ido à horta, a 4 quilómetros do povo, tinha apanhado uma braçada de lenha pelo caminho e já me tinha feito o pequeno almoço. Mulher simples, até no nome – simplesmente Elisa Maria, sem nome de família, iletrada mas sábia, relembro com saudade os seus carinhos, os seus gestos, as suas palavras, as suas conversas – “Oh vó não é papel ogénico, é higiénico” – “Foi assim que a minha professora me ensinou”. Nunca frequentou a escola, tal como as suas duas irmãs, isso era para os homens, quando era... mas os seus dois irmãos foram oficiais do exército, não era portanto por pobreza, mas por costume. No dia em que entrei para a Faculdade ofereceu-me uma caneta, foi uma das melhores prendas que eu alguma vez recebi. Morreu pouco tempo depois...

Mas devem estranhar este meu desvario lamechas, e perguntam-se porque é que eu falo da minha vó Lisa. É que a minha avó não acreditava que o homem tivesse ido à lua. Eu bem lhe explicava que até tinha visto na televisão, que os meus pais me tinham ido acordar às duas da manhã para eu poder assistir, mas nada. Para ela aquilo era impossível – “Poi pode lá ser João, uma coisa dessas, nã, nã acredito, ninguém pode ir à lua, nem os amaricanos, tás a mangar comigo!” – “É verdade vó, eu vi, deu na televisão”. Mas para ela a televisão não significava nada, não era prova, pois para ser prova era necessário que ela a percebesse. E nunca a consegui convencer, nem com a televisão... E não era das mulheres mais fechadas da aldeia, ainda rapariga tinha conhecido Lisboa, coisa que poucas mulheres na aldeia se podiam gabar e contava-me as histórias destas viagens, do comboio a vapor, de como, quando faltava o carvão, os passageiros desciam e iam à lenha, de como o comboio andava tão devagar que se podia descer, nas margens do Tejo e ir apanhar fruta nalgum pomar... Mas que o homem não tinha ido à lua, isso é que não!!!

Lembrei-me hoje do que ela diria de ver uma guerra pela televisão, Ela que viveu três, a I, a Guerra de Espanha e a II Guerra Mundial, será que iria acreditar nesta do Iraque? Dei comigo a dialogar com ela – “Ó vó, os americanos atacaram o Iraque” – “E o que é lá isso João?” – “É um país que fica lá para os lados da Terra Santa, olhe venha ver, estão a dar imagens, olhe parece que acertaram numa maternidade” – “Pode lá ser!” – “É verdade vó, estão a dar na televisão!” – “Ai João, se fôssemos acreditar no que se diz e no que se vê na televisão, então pode lá ser alguém mandar uma bomba para uma maternidade? Qu´és d’esperto rapaz, estás a mangar comigo...”

Não vó, não estou a mangar consigo, não mangava quando falava consigo acerca da lua e não estou a mangar agora... Está a acontecer, agora, hoje...

Tá bem vó, eu digo – o rato roeu a rolha da garrafa do rei d’Angola – pode ser Angola vó, não faz mal...

Adeus vó, vá dando noticias...

A Cruz do Cabeço

Uma simples cruz pode, às vezes, esconder um drama já enevoado pelos anos. Nas aldeias da Beira, muitas delas se podem encontrar: na parede de uma casa já velhinha, por cima da porta de um moinho ou azenha, no cabeço que ladeia um caminho...
Que querem elas dizer? Na maior parte das vezes já não se sabe.

Em Caféde, uma pequena aldeia a 10 Km de Castelo Branco, uma dessas cruzes encontra-se gravada, num cabeço próximo de um caminho de serventia às hortas. Porquê aquela cruz no alto do pequeno cabeço? Nenhuma resposta. Tudo já tinha saído da memória colectiva do povo, único arquivo que a poderia ter retido.
Mas não poderia ali deixar a cruz abandonada, sem nenhuma história para contar. Resolvi então contar-lhe, eu, uma...


Estávamos no inverno do ano de 1234, em Janeiro. Nevava copiosamente. Com dificuldade um cavaleiro avançava, montado num ginete que a cada passo que dava, se enterrava na neve até aos jarretes. O cavaleiro era um nobre frade da Ordem do Hospital, que se deslocava às ordens do seu prior D. Frei Rodrigo Gil, seu nome, D. Frei Mem Vasques. Tinha saído, naquela manhã, da Herdade de Guindintesta, então a sede da Ordem em Portugal e deveria juntar-se aos seus companheiros em Ucrate, região doada à dois anos ao Hospital por el-rei D. Sancho II. Esperava pernoitar nessa noite na Herdade da Cardosa, onde existia uma casa dos Templários. Embora as relações entre as duas Ordens não fossem das melhores, estes não se negariam a dar guarida, por uma noite de invernia, a Frei Mem Vasques.
Mas o acaso fê-lo mudar de planos. Com toda aquela neve, o cavaleiro tinha-se perdido quando chegara às margens do rio Ocreza. Não encontrara o vau que deveria atravessar e agora cavalgava para Noroeste, esperando encontrar abrigo na capela de S. Tiago ou no povoado perto. Como já se disse o cavalo ia andando muito lentamente. Ao contrário a noite ia rapidamente apagando a mortiça luz do dia, tornando cada vez mais difícil o cavalgar do hospitalário.
De súbito, de um pequeno bosque, uma alcateia de lobos surgiu. Naquela época estes animais, acicatados pela fome, não raro atacavam os seres humanos. Foi o que aconteceu desta vez. O pobre cavalo, sentindo as pernas mordidas e com os movimentos tolhidos pela neve, corcoveou. O cavaleiro foi atirado ao tapete de neve e o cavalo, relinchando, fugiu na direcção oposta. A alcateia dividiu-se então, uns perseguindo o cavalo, outros lançando-se sobre o infortunado Mem Vasques.
Eram sete ou oito os lobos que atacaram o hospitalário. Este, ao cair, e a despeito do seu grande e pesado manto de pele, tinha-se levantado lestamente e, desembainhando a espada esperou pelos lobos. Estes não se fizeram esperar mas, um a um, foram caindo com a cabeça fendida ou as entranhas rasgadas com a espada do Frei do Hospital. Daí a cinco longos minutos restavam apenas dois – um deles acometeu – o cavaleiro feriu-o com a ponta, contudo, ao recuar o animal trouxe consigo a espada que se desprendeu da mão de Mem Vasques. Este olhou para a última besta, ao mesmo tempo que empunhava uma pequena adaga. O lobo era enorme, talvez o maior da alcateia, negro com neve gelada a cambiar-lhe o pelo do dorso. Recuou uns passos e depois saltou – o cavaleiro recebeu-o com a ponta da adaga, mas o animal conseguira abocanhar-lhe a garganta. Ambos caíram para não mais se levantarem. A adaga tinha encontrado o coração do lobo, os dentes deste tinham encontrado a jugular do homem!
Na manhã seguinte, alguns homens do lugarejo de Cafidu, ali próximo, pertencente aos templários, encontraram um triste espectáculo – a neve, já algo derretida, deixava ver o topo de um pequeno cabeço – lá, como se o cabeço fosse um altar pagão, jazia um homem, enlaçado na morte com um grande lobo negro. Ao redor sei ou sete lobos estavam caídos, enteiriçados pela morte e pelo gelo. Relativamente perto foi também encontrado o esqueleto, quase descarnado, de um cavalo.
Avisados pelos homens do povoado, daí a dois dias, os hospitalários de Guindintesta foram buscar o corpo do seu companheiro. Para celebrar a sua morte, gravaram no alto do pequeno cabeço – uma cruz.

Peço perdão à verdade, pois a História também é feita de ficção, pois se ela é apanágio do homem, também o é a sua imaginação...

quinta-feira, maio 19, 2005

O OVNI

Há mais de 20 anos que o Juvenal fazia aquele caminho e sempre à mesma hora – entre as duas e as três da manhã. Fazia o turno das 18 às 2 horas na fábrica de lacticínios, quase desde que se lembrava e, num desfiar de um rosário interminável, todos os dias, menos à terça-feira, fazia aquele caminho de regresso a casa. Muita gente lhe dizia para ele ter cuidado, que os tempos agora eram diferentes, mas ele nunca se desfez da sua Zundapp e esta continuava a ser a sua companheira de sempre. A sua cor amarela há muito tinha desaparecido e, atrás, um caixote da fruta, de madeira, preso por esticadores, permitiam-lhe transportar pequenos volumes, em especial os três litros de leite do dia, a que tinha direito, bem como os queijos e os iogurtes, este último, produto recente da fábrica, que levava para os seus netos.

O ruído inconfundível do motor atroava a noite, vencendo mais depressa a neblina que hoje se tinha posto, do que as rodas da mota. Mas para ele a estrada não tinha segredos, conhecia-a como a palma da sua mão, tanto de dia como de noite. Sabia onde estavam os buracos mais profundos, sabia até onde era mais fácil encontrar algum coelho a atravessar a estrada, tantos que ele já tinha apanhado à mão, encandeados pela luz do farolim da mota. Hoje via-se menos, mas era uma noite igual a tantas outras.

Tinha ele acabado de passar o Pontão de Pau, pareceu-lhe ouvir um ruído que se sobrepunha ao barulho do motor. “Que raio?” zurzinou… “Mas que barulho é este?”.
Estava a chegar à entrada da Fazenda do Meio quando levou o maior susto da sua vida: vinda sabe-se lá de aonde, uma luz forte, cegante, começou a baixar do céu. Era uma luz branca, orlada de vermelho, acompanhada de uma pequena bola de luz, também branca, como uma lua. A luz deu duas voltas no ar, manteve-se um instante a pairar e, como que puxada por um elástico invisível, deu um solavanco e desapareceu a uma velocidade incrível no ar!

Ainda hoje Juvenal pensa nesta estranha luz, sempre que faz este caminho. No dia seguinte desfez-se da motorizada e fez um trato com um colega, camarada do tempo da tropa que mora numa aldeia próxima e que faz o mesmo turno na fábrica. Como o Tonho tem um automóvel, um velho Fiat 127, dividem as despesas e a companhia. É só uma questão do Tonho andar mais dois quilómetros. Quando lhe perguntaram o porquê desta atitude, ele ou cala-se ou diz que são ensimesmices dele! Mas nunca contou a ninguém o que tinha visto na estrada, junto ao muro da Fazenda do Meio. Também ninguém consegue explicar a razão das três figueiras que aí existiam, o dono entretanto já as cortou, nunca mais deram figos…

História da Imagem que quis ser fotografia

Nasceu na cidade das imagens e como qualquer criança gostava de brincar…
Ao peão, ao espeta, ao guelas… à macaca! Como ele gostava de brincar à macaca… bem lhe diziam que era uma brincadeira de meninas, mas ele não se importava! Lançava o tijolo feito malha e era saltar, saltar, ora ao pé coxinho, ora com os dois pés para a frente e como tinha jeito, aquele jeito especial de se dobrar com um pé no ar e apanhar a malha no chão…

Samuel era o nome desta criança imagem, deste menino desenho.

Salta Samuel, salta que és livre de saltar… hei-de um dia saltar contigo, gostava de um dia saltar contigo, de quadrado em quadrado, desenhado a giz no alcatrão, salta que és livre de saltar, não importa que seja uma brincadeira de meninas, não somos todos imagens, não somos todos desenhos, saídos de um ventre prenhe de mulher? E nesta cidade de imagens, nesta cidade do existir rindo, havemos um dia de cantar rimas infantis que subam no ar…

E lá longe, depois da cidade das imagens, o rio, pachorrento, chamava o Samuel…

Samueeeeel…

Samueeeeel…

Era um chamar rouco e doce…

Samueeeeel…
Anda saltar à macaca comigo…

Coisa estranha, um menino imagem, saltar à macaca com um rio…
Mas estamos na cidade das imagens sem peias para a imaginação e o Samuel foi saltar à macaca com o rio. E o rio transformou-se em menino, era outro Samuel (ou era eu?) que saltava à macaca, que soltava gritos de prazer infantil, como só as crianças sabem ter prazer e falar prazer, as crianças e os rios! Sabem, eu acho que os rios falam! Desculpem-me, mas tenho mesmo a certeza que os rios falam e jogam à macaca, como o Samuel! Sobretudo os rios que passam por nós! Pelo menos os rios que são imagens e que ficam por detrás dos ventres grávidos das mulheres! Acho mesmo que são eles que fazem a música que se ouve nas cidades imagens, aquela música linda, casada com o cheiro a maresia…
E se esse rio for o Tejo e a cidade imagem for Lisboa, então tenho a certeza de que tudo o que disse é verdade, mesmo que ninguém acredite em mim! Vá, quem quer vir comigo ao alto de um ventre grávido, ver o Samuel e o rio a saltar à macaca, a cantar e a gritar de prazer? Venham, antes que tudo se transforme, antes que o Samuel cresça e seja sonho, antes que não haja luz do sol, antes que o rio deixe de chamar – Samueeeeel…

Sabem? Um dia o Samuel quis ser fotografia e fotografou Lisboa…
Será um bom final para esta estória?
Deixo isso à vossa imaginação…
Confio na vossa sabedoria…

Entretanto… salta Samuel, salta, grita, sê livre e feliz!

E o ventre grávido pariu! Mais uma criança na cidade, mais um grito de liberdade!

Um dia destes

Não, não quero pensar mais no assunto!
Temo mais a minha sombra que qualquer cobra venenosa...
Mas da sombra faço força!
E hei-de, um dia, pisar a relva de um jardim...

Um dia destes um amigo meu, da Marinha Grande, contou-me uma história singular. A história de um homem, um operário vidreiro que foi preso várias vezes pela PIDE. Este homem tinha uma técnica infalível para escapar ao risco de denunciar os seus camaradas devido à tortura - mal entrava na sala de interrogatórios, atirava-se aos algozes - rapidamente caía inanimado pela pancada! Nunca a sua boca o traiu!

Lopo do Córreo vinha açodado

Lopo do Córreo vinha açodado. Corria mais do que andava, palmilhando o caminho desde a sua casa em S. Pero de Sarracenos até à cidade de Bragança. Não queria acreditar no que o seu vizinho Gufredo lhe tinha dito. Seria possível o Infante Pedro estar prestes a casar em segredo com a galega Inês de Castro e logo ali, em Bragança, na igreja de S, Vicente?

Mal chegou à cidade dirigiu-se à igreja, mas estas tinha as portas cerradas e ninguém ali estava para lhe minguar as dúvidas.

Correu então à câmara, a antiga cisterna que agora servia para as reuniões do concilium. Entrou por uma das portas abertas na grossa muralha da vila, mas logo percebeu que a Câmara também estava deserta. Em contrapartida, um magote apresentava-se junto à torre de menagem e para lá dirigiu os seus passos. Era curioso, tanta gente e nada se ouvia, o silêncio era insuportável. Pelas costas apercebeu o seu cunhado Bento da Mu. Puxando-o por um braço, perguntou-lhe das novas e as novas foram as que Gufredo lhe tinha dado. Era verdade, o Infante Pedro tinha casado contra a vontade de el-rei Afonso, com Inês de Castro na igreja de S. Vicente. Quem tinha feito o casório tinha sido D. Gil, deão da Sé da Guarda.

Lopo também se quedou mudo… inconscientemente o seu olhar volveu-se para norte, para a Torre da Princesa. Se ele tivesse um outro sentido do amor, se conhecesse as cantigas que os jograis e os fidalgos da corte cantavam, poderia ter pensado – “o que faz o amor”, segundo dizia o povo, naquela torre teria estado encerrada uma moura amada por um cristão…
Ao Marcelo de Moraes

A Besta

Ao 14º dia, deste mês de Março do ano da graça de 1638, compareceu neste tribunal do santo Ofício, Mariela da Esperança, christã nova, por ter sido acusada pelo seu cunhado, Paio Preto, mestre de marear da barca da torre de San Vicente, de relaçãs pecaminosas com a besta. Pelo sobredito Paio Preto, veio-se a saber que a sobredita Mariela da Esperança lhe pedia com grandes trabalhos, que a levasse à dita torre de San Vicente, nas noutes de lua cheia. Disse o sobredito Paio Preto que não a levando, esta se inteiriçou contra ele, que só com grandes trabalhos conseguiu não levar uns couces no toitiço! Mais disse o sobredito Paio Preto que numa noute de lua cheia, andando ele a preparar a barca para o governador da torre, viu a sua cunhada deitada na praia, grunhindo como quem está gozando em pecado, pelo que logo viu que esta estava se relacionando com a besta! Amerceando-se da pobre, logo ele se deitou em cima da sua sobredita cunhada, para assim a besta não conseguir consumar o acto malino. Disse ainda o sobredito Paio Preto que neste preparo arreparou a sua mulher, Afonsea da Esperança, alma crente e caridosa, que logo o arengou para ir contar tudo ao Santo Ofício! E ele, para salvação da sua alma o fez, pois a bruta besta, que Deus a afaste, só com cheiro a santidade sairia do corpo da sua pobre cunhada. E pela verdade que disse, o jurou sobre os santos evangelhos!

Marianita

No verão, muito gostava eu de me enfiar no vão das escadas, aproveitando o fresquinho da obscuridade, ali ficando horas sobre horas. Um dos meus passatempos preferidos era tentar adivinhar quem descia as escadas, só pelo som dos passos. Alguns eram fáceis – o som arrastado dos passos da Dona Genoveva; o toc toc tic do Senhor Artur e da sua bengala; o som pesadão do Senhor Lourenço da mercearia… Outros, adivinhava-os pelas horas – a Dona Preciosa, logo a seguir ao almoço, todos os dias, a caminho da confeitaria para um café e uma Noz de Cascais; antes do jantar, os passos decididos do Chico da Dona Amélia, moinante da noite, que de dia nada fazia…

Mas o que eu gostava mais era de ouvir os passos leves da Marianita, acompanhados por aquele aroma a lavanda. A Marianita era a minha paixão há muito tempo. Andávamos os dois na mesma escola mas ela, mais velha, estava na classe a seguir à minha. Tudo nela eu adorava, as suas tranças da cor do trigo, os seus olhos azuis acinzentados, os vestidos ornados de finas rendas, as soquetes brancas, as suas sandálias à inglesa, os seus passos leves e sincopados a descer as escadas, a sua mão alva que se pressentia a afagar o corrimão. Em tempo de aulas, a minha ânsia era ouvir a sua porta a bater, lá no terceiro andar, e eu a esperar um pouco para a seguir, uns passos respeitosos atrás, até à escola onde nos intervalos a procurava incessantemente com os olhos. E no Verão, que bom que era no Verão, estar no vão da escada, a adivinhar os passos dos vizinhos, esperando que a mãe da Marianita a mandasse fazer algum recado à retrosaria ou à mercearia do Senhor Lourenço, ouvir-lhe os passos e aspirar o aroma a lavanda, que ela deixava para trás a perfumar a escada…

Mas a hora fatídica teria que chegar. Estávamos já os dois no Liceu, a mim as borbulhas da puberdade atacavam em força, mas a Marianita continuava na mesma, desenvolta, a pele sedosa, só não usava tranças, caindo-lhe agora o cabelo, da cor do trigo, pelas costas em ondas doiradas. As aulas terminaram e o Verão tinha chegado. No primeiro dia de férias, mal engoli o pequeno almoço corri para o vão das escadas e… coisa terrível… já lá não cabia! De repente vi tudo enevoado, senti que algo me empurrava para um abismo negro…

Ainda não refeito do susto, sentei-me no último degrau da escada e encostei a cabeça a uma trave do corrimão. Ali fiquei alguns momentos, como que suspenso no tempo. Não ouvia nada, nem sequer os passos leves a descer a escada. Foi o aroma a lavanda que me despertou do torpor – a Marianita ali estava, a olhar para mim, um sorriso lindo no lindo rosto. Num impulso levantei-me e ouvi-me dizer, como num sonho – “Marianita, queres ir comigo comer um gelado à mercearia do senhor Lourenço?”

A Marianita aceitou…