quinta-feira, outubro 06, 2005

O Nosso Coração Árabe

Tudo se passa em 1064!

Coimbra, a muçulmana, acaba de cair às mãos do moçárabe Sesinando. Ibne Hazm, um dos grandes poetas árabes da Península Ibérica tinha acabado de morrer. Ibne Mucana estava já velho.

Ibne Mucana foi um dos poetas de Lisboa. Nasceu em Alcabideche, entre o final do século X e princípios do XI. Viveu nas cortes dos Abácidas e dos Edricitas de Málaga e dos Aftácidas de Badajoz. Já velho, retirou-se para a aldeia onde nasceu. Terá morrido por volta do final da década de 60.

Estamos em 1064, a reconquista avança, pouco falta para a Batalha de Zalaca, escassos 30 anos faltam para chegar à Península o Cavaleiro Henrique de Borgonha. O texto que se segue foi escrito por várias razões – pode ser entendido como uma recensão (porque não), uma homenagem a um poeta, um mero exercício de escrita (depois da leitura de alguns poemas do “Portugal na Espanha árabe”), etc. No fundo, é uma homenagem a nós próprios, ao nosso coração árabe de que nos esquecemos bastas vezes e que David Lopes, Borges Coelho e Cláudio Torres (entre outros, infelizmente poucos) nos querem fazer lembrar.


Ibne Mucana

“Esta manhã nada nos concedeu.
Mas durante a tarde júbilo e alegria
Deram-lhe a escolher e preferiu beber a tarde
Insistiram mas recusou beber a manhã!

Assim escrevia Ibne Darrague Alcacetali, mais de trinta anos atrás. Ibne Mucana levantou os olhos do livro e fechou-os, antes de os reabrir para observar os bois que, ao longe, lavravam os campos de Alcabideche, neste fim de tarde de Outono.
Abú Zaide Ibne Mucana Alisbuni Alcabdaque sentia-se velho. Já com dificuldade conseguia manejar a podoa com que cortava as silvas. Longe já iam os tempos das cortes de Málaga ou de Badajoz, estava agora na sua aldeia e aí queria morrer… no lugar onde tinha nascido.
A morte! Há pouco tinha recebido a notícia da morte de Ibne Hazm, Ibne Hazm o poeta, Ibne Hazm do “Colar da Pomba”. Há pouco tempo também tinha caído Coimbra às mãos dos perros, que Alá os confunda.
A tarde findava, o vento levantava-se e empurrava as trevas, as velas dos moinhos e a friagem enevoada que vinha da serra. Ibne Mucana devia levantar-se agora e acender a braseira em forma de cúpula que iria aquecer o aposento. Mas ficou sentado de olhos fechados, a beber o fim da tarde em longos sorvos, sonhando com poesias velhas e novas, com poetas velhos e novos… sonhou que era um ginete correndo ao vento, num caminho incendiado pelo fulgor do ouro e da prata, nas margens do Tejo. Sonhou que caçava javalis, que vinham dos descampados destruir as colheitas de cereais, de cebolas, de abóboras. Sonhou que gentis gazelas lhe lambiam o rosto, onde as barbas brancas faziam lembrar a cor das areias do deserto. Ibne Mucana bebeu sôfrego a tarde, como um mancebo de cabelos cor de azeviche bebe o vermelho do vinho novo, generoso, erguendo a taça de vidro à luz do por-do-sol! Quase surdo, os ruídos de quem voltava a casa depois do trabalho nos campos, não o penetravam, mas chegavam-lhe os cheiros, húmidos, da noite regressada… a rosas e a jasmim.
Sentiu a negrura aproximar-se, as estrelas a erguerem-se, a lua a caminhar para ocidente, o fulgor da luz no negro nocturno, como um bando de corvos ornados de gemas brilhantes. A noite caiu! Como estava prestes a cair a verdadeira fé nas Espanhas. E Ibne Mucana continuou o sonho, em que a tarde pede à noite que não se esqueça de dizer ao Almuedine para anunciar a hora da oração.
O poeta acordou já a brisa da manhã trazia o sol escondido atrás de algumas nuvens outonais. Alguém o tinha tapado durante a noite. Sentia-se esfomeado, pois tinha perdido a última refeição do dia. Quando se levantou pareceu-lhe ouvir um sussurro, quase um queixume, que vinha das faldas da serra: “Alisbuni Alcabdaque, breve a tua fé desaparecerá deste lugar e os rios de Espanha chorarão de tristeza, breve os impuros passearão nos adarves das alcáçovas que os filhos do Islão ergueram! Mas tu não viverás para o contar… Alisbuni Alcabdaque, o teu destino é o olvido, mas os teus poemas viverão para sempre em honra de Alá… Alisbuni Alcabdaque, chora, o pranto é sinal de amor, e o seu odor é de Deus criador e incriado…”. As lágrimas deslizaram pelas faces enrugadas do velho poeta, mas a sua alma estava leve, pois compreendia que tudo o que estava a acontecer era vontade de Alá, exaltado seja! Ibne Mucana sentiu o peso da idade, pouco lhe restava para viver, mas que as suas forças não lhe faltassem para manejar a podoa que lhe cortaria as silvas, que Deus não lhe faltasse com o amor da liberdade!

Ousei ser espírito de um árabe, sonhar o que ele podia ter sonhado, quando a sombra nórdica pendia já na direcção do Al-Andaluz. Perdoar-me-ão o arrojo de fazer esta viagem mas, como dizia Ibne Darrague Alcacetali, que Ibne Mucana estava a ler: “não sabes, amiga, que ficar é morrer e que as moradas dos cobardes são túmulos?”.

Ibne Mucana não viveu para ver o que aconteceu, mas muitas lágrimas continuaram a ser derramadas, lágrimas que amassaram o barro que consolidou a nossa História, que permitiu a nossa viagem, que faz parte dos nossos sonhos!

1993