quarta-feira, junho 15, 2005

Olá Vó




Há muito tempo que não falava contigo. E que saudades tenho eu das nossas conversas, sobretudo daquelas à noite, quando eu ia sozinho para Caféde, depois de convencer os meus pais que não te iria maçar. Lembro-me da minha mãe me dizer – “Vê lá João, a avó já está velha, não lhe dês trabalho”. Era mentira, não era vó? A vó nunca foi velha! A minha avó Lisa tinha a força do granito, do granito das paredes da nossa casa, do granito dos cabeços da minha terra.

Não vó, hoje não te venho falar de guerras, embora elas ainda aí estejam. Pois, o homem não mudou e eu tenho dúvidas se ele ainda vai mudar. Mas não te preocupes, continuo a acreditar num mundo melhor e vou fazendo os possíveis para que isso aconteça. Como dizia o Zé Mário Branco, vou pondo um pauzinho na engrenagem, nem que seja através da minha filha. Sim, da Marta, da tua bisneta que nunca conheceste. Acho que consegui que também ela acredite num mundo melhor. Ela é o meu pauzinho, o meu melhor pauzinho. Tu irias gostar muito dela. Sabes, ela ainda conheceu a nossa casa. Ainda lá passou uns dias, antes da casa ser vendida. Era bebé, e passou os dias dentro de água, num verão de grande calor. Lembras-te daquele alguidar grande, de folha, onde tu lavavas a roupa? Foi a “piscina” dela! Ainda hoje ela gosta muito de ir à nossa aldeia.

Mas não era da Marta que eu te queria falar hoje. Estive a ver uma fotografia de Monsanto. Pois, da terra do Zé Paiva. Tu nunca lá quiseste ir, apesar de nós lá irmos todos os verões. Não te davas bem nos carros, dizias tu. Mas como eu estava a dizer, estava a ver essa fotografia e lembrei-me dos cheiros de Caféde. Sei lá porquê, lembrei-me. Lembrei-me do cheiro à tardinha, quando vínhamos os dois do Valado e nos aproximávamos do povo, do cheiro aos lares que se iam acendendo, do cheiro da terra, depois de uma chuvada no final do Verão e, sobretudo, do cheiro do pão quente, saído do forno do Touril da ti Amélia, quando tu me fazias aqueles pássaros de massa de pão, com um bico feito de um pequeno pauzinho…

Desculpa vó, agora não consigo continuar a falar, tenho os olhos cheios de lágrimas, mas um dia destes torno a falar contigo…


Amadora, 29 de Fevereiro de 2004

quinta-feira, junho 02, 2005

Sabes Frei António

Ao Vasco Ribeiro
Sabes, frei António, o tempo é algo que não se sente, que não se pensa. Há um tempo para mandar, um tempo para sofrer, um tempo para amar, enfim há um tempo para tudo, mas o tempo não se pode pensar e sentir. Tu pensas o tempo, frei António? Não, tu pensas no tempo! Tu sentes o tempo? Não, tu só podes sentir no tempo, porque o tempo, frei António, é algo fugidio, é tão instante que se torna impossível de captar. Mas o tempo faz parte de nós, não o pensamos, não o sentimos, mas em nós o pressentimos, em nós o percepcionamos, o tempo existe por nós! Pressentes em ti o tempo, frei António? E nestas pedras, afeiçoadas pelas mãos de milhares de homens, pela vontade de um homem que queria ter filhos, um homem que te ouviu, frei António e que pela faculdade de mandar, ordenou?
E agora, frei António?
E agora, o que fazer com este tempo. Este tempo que fez mandar, que fez sofrer, que fez, talvez, amar...
E agora, frei António?

El-rei chegou já tarde, já a noite tinha caído, sem o fausto habitual, sozinho no seu coche dourado, com a sua guarda pessoal à frente e atrás. Veio quase em segredo, queria estar a sós com a sua grande obra, pela primeira e única vez, com Mafra, agora quase pronta. Dentro de pouco tempo faria El-rei 41 anos, poucos homens esperariam tão ansiosos por essa data. Mas nesse dia se iria sagrar a igreja, calendário de uma parte da sua vida. Tinham passado 29 anos da profecia de frei António de São José, afinal, por ela nasceram os seus filhos, por ela nasceu o futuro rei de Portugal! E El-rei pensou: “E agora, frei António? O que fará o tempo à minha obra?”

Anda, frei António, vem agora comigo procurar o tempo nestas pedras, vem sentir estas pedras no tempo, vem pensar no tempo destas pedras...
Não te esqueças, o tempo destas pedras é também o tempo dos homens...




Amadora/Venteira, 14 de Maio de 2003