sexta-feira, maio 20, 2005

A Cruz do Cabeço

Uma simples cruz pode, às vezes, esconder um drama já enevoado pelos anos. Nas aldeias da Beira, muitas delas se podem encontrar: na parede de uma casa já velhinha, por cima da porta de um moinho ou azenha, no cabeço que ladeia um caminho...
Que querem elas dizer? Na maior parte das vezes já não se sabe.

Em Caféde, uma pequena aldeia a 10 Km de Castelo Branco, uma dessas cruzes encontra-se gravada, num cabeço próximo de um caminho de serventia às hortas. Porquê aquela cruz no alto do pequeno cabeço? Nenhuma resposta. Tudo já tinha saído da memória colectiva do povo, único arquivo que a poderia ter retido.
Mas não poderia ali deixar a cruz abandonada, sem nenhuma história para contar. Resolvi então contar-lhe, eu, uma...


Estávamos no inverno do ano de 1234, em Janeiro. Nevava copiosamente. Com dificuldade um cavaleiro avançava, montado num ginete que a cada passo que dava, se enterrava na neve até aos jarretes. O cavaleiro era um nobre frade da Ordem do Hospital, que se deslocava às ordens do seu prior D. Frei Rodrigo Gil, seu nome, D. Frei Mem Vasques. Tinha saído, naquela manhã, da Herdade de Guindintesta, então a sede da Ordem em Portugal e deveria juntar-se aos seus companheiros em Ucrate, região doada à dois anos ao Hospital por el-rei D. Sancho II. Esperava pernoitar nessa noite na Herdade da Cardosa, onde existia uma casa dos Templários. Embora as relações entre as duas Ordens não fossem das melhores, estes não se negariam a dar guarida, por uma noite de invernia, a Frei Mem Vasques.
Mas o acaso fê-lo mudar de planos. Com toda aquela neve, o cavaleiro tinha-se perdido quando chegara às margens do rio Ocreza. Não encontrara o vau que deveria atravessar e agora cavalgava para Noroeste, esperando encontrar abrigo na capela de S. Tiago ou no povoado perto. Como já se disse o cavalo ia andando muito lentamente. Ao contrário a noite ia rapidamente apagando a mortiça luz do dia, tornando cada vez mais difícil o cavalgar do hospitalário.
De súbito, de um pequeno bosque, uma alcateia de lobos surgiu. Naquela época estes animais, acicatados pela fome, não raro atacavam os seres humanos. Foi o que aconteceu desta vez. O pobre cavalo, sentindo as pernas mordidas e com os movimentos tolhidos pela neve, corcoveou. O cavaleiro foi atirado ao tapete de neve e o cavalo, relinchando, fugiu na direcção oposta. A alcateia dividiu-se então, uns perseguindo o cavalo, outros lançando-se sobre o infortunado Mem Vasques.
Eram sete ou oito os lobos que atacaram o hospitalário. Este, ao cair, e a despeito do seu grande e pesado manto de pele, tinha-se levantado lestamente e, desembainhando a espada esperou pelos lobos. Estes não se fizeram esperar mas, um a um, foram caindo com a cabeça fendida ou as entranhas rasgadas com a espada do Frei do Hospital. Daí a cinco longos minutos restavam apenas dois – um deles acometeu – o cavaleiro feriu-o com a ponta, contudo, ao recuar o animal trouxe consigo a espada que se desprendeu da mão de Mem Vasques. Este olhou para a última besta, ao mesmo tempo que empunhava uma pequena adaga. O lobo era enorme, talvez o maior da alcateia, negro com neve gelada a cambiar-lhe o pelo do dorso. Recuou uns passos e depois saltou – o cavaleiro recebeu-o com a ponta da adaga, mas o animal conseguira abocanhar-lhe a garganta. Ambos caíram para não mais se levantarem. A adaga tinha encontrado o coração do lobo, os dentes deste tinham encontrado a jugular do homem!
Na manhã seguinte, alguns homens do lugarejo de Cafidu, ali próximo, pertencente aos templários, encontraram um triste espectáculo – a neve, já algo derretida, deixava ver o topo de um pequeno cabeço – lá, como se o cabeço fosse um altar pagão, jazia um homem, enlaçado na morte com um grande lobo negro. Ao redor sei ou sete lobos estavam caídos, enteiriçados pela morte e pelo gelo. Relativamente perto foi também encontrado o esqueleto, quase descarnado, de um cavalo.
Avisados pelos homens do povoado, daí a dois dias, os hospitalários de Guindintesta foram buscar o corpo do seu companheiro. Para celebrar a sua morte, gravaram no alto do pequeno cabeço – uma cruz.

Peço perdão à verdade, pois a História também é feita de ficção, pois se ela é apanágio do homem, também o é a sua imaginação...