quinta-feira, maio 19, 2005

Marianita

No verão, muito gostava eu de me enfiar no vão das escadas, aproveitando o fresquinho da obscuridade, ali ficando horas sobre horas. Um dos meus passatempos preferidos era tentar adivinhar quem descia as escadas, só pelo som dos passos. Alguns eram fáceis – o som arrastado dos passos da Dona Genoveva; o toc toc tic do Senhor Artur e da sua bengala; o som pesadão do Senhor Lourenço da mercearia… Outros, adivinhava-os pelas horas – a Dona Preciosa, logo a seguir ao almoço, todos os dias, a caminho da confeitaria para um café e uma Noz de Cascais; antes do jantar, os passos decididos do Chico da Dona Amélia, moinante da noite, que de dia nada fazia…

Mas o que eu gostava mais era de ouvir os passos leves da Marianita, acompanhados por aquele aroma a lavanda. A Marianita era a minha paixão há muito tempo. Andávamos os dois na mesma escola mas ela, mais velha, estava na classe a seguir à minha. Tudo nela eu adorava, as suas tranças da cor do trigo, os seus olhos azuis acinzentados, os vestidos ornados de finas rendas, as soquetes brancas, as suas sandálias à inglesa, os seus passos leves e sincopados a descer as escadas, a sua mão alva que se pressentia a afagar o corrimão. Em tempo de aulas, a minha ânsia era ouvir a sua porta a bater, lá no terceiro andar, e eu a esperar um pouco para a seguir, uns passos respeitosos atrás, até à escola onde nos intervalos a procurava incessantemente com os olhos. E no Verão, que bom que era no Verão, estar no vão da escada, a adivinhar os passos dos vizinhos, esperando que a mãe da Marianita a mandasse fazer algum recado à retrosaria ou à mercearia do Senhor Lourenço, ouvir-lhe os passos e aspirar o aroma a lavanda, que ela deixava para trás a perfumar a escada…

Mas a hora fatídica teria que chegar. Estávamos já os dois no Liceu, a mim as borbulhas da puberdade atacavam em força, mas a Marianita continuava na mesma, desenvolta, a pele sedosa, só não usava tranças, caindo-lhe agora o cabelo, da cor do trigo, pelas costas em ondas doiradas. As aulas terminaram e o Verão tinha chegado. No primeiro dia de férias, mal engoli o pequeno almoço corri para o vão das escadas e… coisa terrível… já lá não cabia! De repente vi tudo enevoado, senti que algo me empurrava para um abismo negro…

Ainda não refeito do susto, sentei-me no último degrau da escada e encostei a cabeça a uma trave do corrimão. Ali fiquei alguns momentos, como que suspenso no tempo. Não ouvia nada, nem sequer os passos leves a descer a escada. Foi o aroma a lavanda que me despertou do torpor – a Marianita ali estava, a olhar para mim, um sorriso lindo no lindo rosto. Num impulso levantei-me e ouvi-me dizer, como num sonho – “Marianita, queres ir comigo comer um gelado à mercearia do senhor Lourenço?”

A Marianita aceitou…