A vida no autocarro 113
Li, como sempre leio, a frase aos
solavancos, equilibrando a mochila nos joelhos e o livro seguro entre as mãos
que também seguravam a barra do assento da frente: “Olhem só, à matéria juntou-se a outra matéria, a sopa primeva começou
a ficar grumosa. Depois vieram as estrelas, os planetas, organismos celulares,
peixes, jornalistas, dinossauros, advogados, mamíferos. Vida, vida.” Quem
isto escreveu, foi o Salman Rushdie, no seu livro Fúria. O cenário era um planetário em Nova Iorque, a cidade-cosmos
(ou será uma CosmoCidade?).
Resolvi então contemplar a vida ali, naquele
autocarro 113, naquela sopa primeva, também ela grumosa. Afinal o 113 também
pode ser um planetário, também ele representa um mundo repleto de vida e é quase
perfeito. Pelo menos durante 20 minutos por dia, para lá e meia hora por dia
para cá, ele é o meu cosmos, o meu mundo.
Ele, o meu mundo, é um universo de
lata e plástico, com entranhas de cubos em aço e tubos de borracha, com óleos,
líquidos vários e pequenas explosões. Este universo absorve matérias inertes,
mas que mal entram, mal penetram neste mundo, logo se transformam em grumos
primevos, grumos da sopa primordial. A pouco e pouco vou conhecendo muitas
estrelas e planetas do meu universo, e peixes e jornalistas, dinossáurios,
advogados… outros são-me desconhecidos, mas por pouco tempo. Mal entram (mal
existem) conheço-os. Depois, quando saem (quando deixam de existir), tornam-se
traços da luz memorial que, esbaforidos, correm para outros mundos, outros
universos.
Para lá, a viagem faz-se a favor da
corrente, é calma, adormecente. Para cá é nervosa, sobressaltada. Para lá
ouve-se o silêncio sonolento, entrecortado por algumas conversas ao telemóvel,
mas mesmo essas, são mornas, sincopadas. Para cá chora-se, canta-se, fala-se em
vozes zangadas, estralhaçadas, ouvem-se os braços, alguns abraços, as pernas
nervosas, as cabeças cansadas.
Nesse ciclo-vida, marcado pela
cadência das entradas, porque as saídas não contam, há vidas de todas as
idades. Os que são planetas, jovens idosos, velhos na flor-da-idade e também as
crianças-estrelas, jasmins, cristais de neve. As crianças, essas são chaves,
chaves que abrem mundos-outros que fazem parte deste mundo. Ontem, na viagem
para cá, entraram duas estrelas. Cada uma delas não terá mais que 4 anos. Entraram,
de mão-dada-com-a-sua-mãe-cada-uma-delas. Conhecem-se as duas e eu já as
conheço. São presença constante nestas viagens para cá. Talvez andem na mesma
escola e mal entram, troam os seus nomes – a Larissa e a Luana – nomes
tele-visivos, algo bárbaros para os meus ouvidos romanos. Uma tem pequenas
tranças, no cabelo, que terminam numa esfera colorida – como uma bola colorida
nas mãos de uma criança, falou o poeta. A outra tem na cabeça, um laçarote,
vermelho vibrante, engalanante.
Ontem a Larissa e a Luana quiseram
cantar. De um lugar para o outro, as suas vozes
elevaram-se acima do ronronar rouco e oleoso do motor e das outras vozes do
113:
- “Come a papa Luana, come a papa”.
- “Não é Luana é Joana, Come a papa
Joana come a papa”
- “Come a papa Luana, come a papa”
- “Já diiiisseeeee!!! Não é Luana, é
Joana”
- “Come a papa Lua…”
- “Ó mãeeee, olha a Larissa!!!”
-“Meninas, portem-se bem!!!”
E a mãe da Luana ajeitou-a ao colo e
continuou a falar com a sua vizinha do lado. E o senhor que ia no banco atrás
já fez um olhar de enfado… têm destas coisas as meninas-estrelas do autocarro
113 – já vos disse que a Larissa tem uma esfera colorida na cabeça?
E, afinal, porque há-de ser sempre a
Joana a comer a papa? Luana, tu que tens esse laçarote vermelho, porque não
podes ser tu a menina-estrela da cantiga do Barata Moura? Um, dois, três, uma
colher de cada vez, quatro, cinco, seis… e eu prometo que um dia destes vos
conto uma história de reis…
Venteira (Amadora), 2014
1 Comments:
Excelente blog com belos textos. :)
Um abraço.
Rogério Pires
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