domingo, maio 22, 2005

O rapaz do tambor que queria ser general

Para a Carla d'Almeida Lopes

Chamava-se Ramiro, tinha um nome de nobre antigo, mas desde a mais tenra idade que se habituara a levantar, ainda a alba estava longe, para tratar dos animais da pequena quintarola que os seus pais traziam aforada, ali perto de Fetais dos Pretos, a meia légua do Sobral de Monte Agraço. Era um rapaz franzino, baixote, de tez muito escura, como a maioria dos habitantes do seu lugar, talvez descendentes de antigos escravos. Ramiro nunca se preocupara em saber essas coisas, só sabia que as pessoas de Fetais, ou melhor, dos outros Fetais, não gostavam muito deles. Na realidade havia quatro Fetais, o dos Pretos, o dos Carneiros, o de Nossa Senhora e a Zibreira de Fetais. O dos Pretos era o mais miserável de todos os Fetais e nele, todos sem excepção, homens, mulheres e crianças participavam do trabalho árduo, condição única de sobrevivência.
Ramiro tinha 7 anos, não tinha nem tempo nem consciência para reflectir sobre a sua condição. Repetia gestos seculares que lhe garantiam a vida, uma vida fechada num horizonte de pouco mais de uma légua. Uma vez por mês o mercado do Sobral, uma vez por ano a feira dos Santos à sombra da grande Igreja de santo Quintino. Talvez um dia uma viagem a Torres Vedras, Lisboa um sonho de uma vida. Ideias tinham. Que os animais também tinham gosto, uma vez que as suas vaquinhas gostavam mais do verde do prado de primavera, do que da palha do verão, que era português, embora não soubesse propriamente o que isso queria dizer, que o rei que ele imaginava portentoso, estaria ausente no Brasil (onde seria este Brasil?), que os franceses estavam cá!
Corria o ano de 1808, Junot permanecia em Lisboa, depois de o exército napoleónico ter invadido Portugal e a família real ter embarcado para o Brasil. O país dava voltas sobre voltas, mas a vida de Ramiro permanecia inalterada, como inalteradas ficam as velas de um moinho, por muito que o vento as faça voltear. Quando param permanecem iguais, mais estragadas apenas. Da capital chegavam notícias breves que em nada interessavam a Ramiro. Apenas os homens murmuravam entre si: que o francês já se tinha ido embora, que os ingleses também estavam cá. Ramiro continuava a mourejar todos os dias. Tinha para comer, pouco, mas tinha, tinha um tecto para o tapar à noite, as suas vaquinhas estavam vivas, era isso que lhe interessava, isso bastava-lhe.
Entretanto tinha nascido um irmãozito a Ramiro! Ele era o mais velho de cinco irmãos, agora seis. Segundo o costume da época, era preciso baptizar rapidamente o petiz. Havia uma capela nos Fetais de Nossa Senhora, mas nunca era utilizada pelos naturais de Fetais dos Pretos. Era portanto necessário ir rapidamente ao Sobral e fazer a cerimónia na Matriz. Assim, num Domingo, a família fez-se à estrada a caminho da vila. Tinham chegado ao cruzamento da Calçada, quando uma cavalgada lhes cortou, por instantes, o caminho. Eram soldados, uns vestidos de azul, outros de vermelho. O pai explicou a Ramiro, mais tarde, que os de azul eram portugueses, enquanto os de vermelho eram ingleses. Mas o que mais impressionou Ramiro, foi o primeiro dos cavaleiros. Alto, casaca vermelha com dragonas douradas, longo sabre com guardas douradas, embebido numa bainha de veludo azul-escuro debruado a oiro, duas pistolas de pederneira em lindíssimos coldres presos a boldriés a tiracolo, idênticos à bainha do sabre e, na cabeça, uma barretina negra com plumas vermelhas que esvoaçavam ao vento. Na lapela da casaca brilhavam rosetas e barretas, condecorações de vários feitios e cores. Ramiro quedou-se tão embasbacado que só um calduço do pai o levou a recomeçar a andar, quando a cavalgada passou. Já na vila a sua curiosidade foi finalmente satisfeita. Tratava-se de Guilherme Carr Beresford, general inglês e do seu estado-maior. Na igreja, olhando solenemente para o altar-mor enquanto o seu irmãozinho era baptizado, Ramiro prometeu a si próprio – “um dia, hei-de ser general!”…

Um ano passou sobre este episódio. Notícias terríveis chegavam à aldeia. Notícias de centenas de mortes no Porto e por todo o norte do país. E grandes transformações tinham também chegado à região do Sobral. Dezenas de aldeias do lado de Torres estavam a ser abandonadas e as suas gentes vinham para ali. Obras estavam a ser feitas na Senhora do Socorro e ali perto da Vila. A pouco e pouco, um enorme complexo militar nascia, uma espécie de grande muralha de terra e pedra nascia, dizia-se para proteger Lisboa dos franceses, desde o Vimeiro até ao Tejo.
Um dia, um oficial bonacheirão apareceu em Fetais dos pretos com uma carroça e um grupo de soldados, Na carroça um grupo de miúdos com ar assustado. Com um vozeirão enorme, o oficial mandou “prantar toda a canalha” à sua frente! Olhou os gaiatos, um a um, até que atentou em Ramiro. A um gesto seu, o garoto foi agarrado por dois soldados. O oficial clamou pelo pai, disse-lhe qualquer ao ouvido e Ramiro foi içado para a carroça. Em estado de choque, Ramiro andou o resto do dia de aldeia em aldeia, com o grupo de miúdos a avolumar-se dentro da carroça e, era já noitinha, quando chegou a um local (mais tarde percebeu ser o Monte de Nossa Senhora do Socorro, onde lhe deram um pedaço de pão escuro e uma tigela de caldo quente e o mandaram dormir em cima de um monte de palha, dentro de um pardieiro.
Afinal, o garoto que queria ser general ia ser tambor. Os meses seguintes passou-os a aprender a marchar, a tocar o tambor e os ritmos necessários a comunicar com as tropas em campanha!
Em Janeiro de 1810, Ramiro foi levado para o Forte Grande do Sobral de Monte Agraço, uma das praças fortes das linhas de Torres e aí voltou a encontrar o seu general Beresford. Agora já não lhe pareceu tão alto, mas mesmo assim era um homem imponente, com as suas longas pernas, quase da altura do rapaz do tambor. A vida militar nem era muito dura para Ramiro. Algumas marchas entre o forte e alguns fortins das proximidades e pouco mais. Mas mesmo assim, um dia adoeceu. Eram as febres malinas, explicaram os físicos militares. Ramiro ficou dias deitado num catre, no interior de uma grande tenda, cada vez definhando mais. Pela primeira vez pensou que há muito que não via os pais, os irmãos e as suas vaquinhas, lá em Fetais dos Pretos, afinal ali tão perto. Cada vez se sentia mais fraco, a ponto de um outro tambor lhe ter que levar a malga do caldo aos lábios quentes e endurecidos.
Um dia, na tenda entraram dois homens. Um padre e o próprio general Beresford. O padre perguntou a Ramiro se queria alguma coisa. Com a boca entorpecida pela febre, o petiz conseguiu balbuciar – “quero ser general”. Uma breve troca de palavras entre os dois adultos e o general, num movimento solene, retirou uma das suas rosetas da lapela e colocou-a em cima do peito arfante do tambor. Ramiro, que começava a sentir uma força estranha a toldar-lhe os olhos, deu por si a pensar, como num sonho – “sou general”…

Amadora, 21 de Maio de 2005

1 Comments:

Blogger máximo said...

:)

andas muito blogueiro.

12:10 da manhã  

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