sexta-feira, maio 20, 2005

A Viagem

A Viagem (o início – a mancha absorta)


As cores misturam-se, saltam em frente dos olhos, assaltam-nos os olhos. Ficamos privados do ver, porque ver é conhecer. Doem-me os olhos. Doem-me as cores, dói-me essa mancha, absorta. Viajo sem companhia, viajo pelo tempo, mas não tenho o tempo. Ter o tempo é parar, e numa viagem não devemos parar, mesmo que nos doa os olhos. Olho pela janela e não vejo, apenas olho e pressinto uma visão dorida. Não tenho tempo, não tenho olhos, não tenho os olhos do tempo.
Aquela mancha vermelha, absorta, assaltou-me os olhos e deixou-me sem espaço. Viajo pelo espaço mas não o percebo. Quero apreender o espaço, um espaço velho, um espaço esconso que se fecha à medida que avanço na minha viagem. O espaço não me deixa ver o tempo. O espaço não me deixa ver o espaço. O espaço ignoto, rude, violento.
Violentam-me os olhos, as cores. Violentam-me os sentidos, as cores.
Porque é que viajo?
Doem-me os olhos ao iniciar esta viagem. Viajo sem tempo nem espaço, apenas uma mancha me persegue, uma mancha colorida, sangrenta, absorta…
Serei eu que viajo? Serão os meus olhos? Serão, decerto, todos os meus sentidos…
Inicio a viagem…

Cadáveres de mim


Viajo; como quem não quer olhar para trás.
Mas todos os futuros têm passados. Todas as vidas carregam consigo os seus mortos, aqueles mortos que nos servem de pontes para passarmos os rios que nos tolhem os passos. Eu carrego comigo, cadáveres! Cadáveres de mim. Estilhaços da minha vida, ruínas impenetráveis, como selvas, como castelos desencantados, protegidos por espinheiros que nos arrancam a pele e os sentidos.

Viajo; como quem não quer olhar para trás.
Insensato, trouxe comigo um esquife que não é “de ferro com embutidos de diamante”. Mas os nossos mortos carregam-se melhor aos ombros, à vista de toda a gente. Mas eu não quero mostrar os meus cadáveres, cadáveres de mim, cadáveres que, como num sortilégio de luz, brilham no escuro, fosfóricos, ridentes, pasmados.

Viajo e sou obrigado a olhar para trás.
Como um pastor em transumância, tomo conta dos meus cadáveres de mim. Eles são como esqueletos de um rebanho tresmalhado, arrogantes do seu futuro, no meu futuro…

Continuo a viagem…

A cidade melancólica



Cheguei à cidade. Diziam os antigos que quem visse a capital do Império, teria visto todas as outras cidades. Mas o que sabiam os antigos – lendas, fábulas, encantamentos, feitiços…

Cheguei à cidade. É uma cidade redonda, melancólica, baça. Entre as ruínas procuro vestígios do Império, ossadas brancas carcomidas pelo tempo.

Cheguei à cidade. Os caçadores abandonaram-na. É agora habitada por feiticeiras que procuram vestígios do Império, entre as ruínas. Ruínas quase homens, quase mulheres… queimadas e exangues.

Estou na cidade, entre os mortos que, ao peito, alimentam os vivos. Entes calcorreiam-na, luísas que sobem a calçada, num vai-vem cansado, constante, redondo. Agora doem-me outra vez os olhos e dói-me o ser! O ser eu, o ser que somos nós, daqui e do outro lado do espelho. Grito a dor. A minha dor humilhada, ofendida, fendida pelas lanças das feiticeiras bolorentas do Império. Sinto manar o meu sangue, em golfadas de espanto e saliva.

Deixo a cidade. Sou caçador, não posso pertencer à cidade. Abandono-a, como os meus pais. Só as feiticeiras ficam, e os entes cansados. Não encontrei vestígios do Império, só ossadas brancas, polidas pelo vento seco e morno… seco e morno… um vento melancólico…

Prossigo a viagem.

A viagem dos outros


Viajo no interior de uma redoma. Uma redoma que me tolhe os passos, que me impede os sonhos.

Preso neste mundo de faz-de-conta, procuro imaginar a viagem dos outros, nos seus sonhos, nos seus pesadelos, nas suas redomas cósmicas, nos seus gritos e êxtases…

Mas a minha redoma impede-me o ver, o sentir, o sonhar…

E na viagem dos outros procuro o meu eu, troco os destinos, vejo-me a partir, vejo-me a chegar, já não sei se parto, já não sei se quero chegar…


Se me encontro? Não sei… há uma inconsistência neste meu mundo em viagem, neste meu mundo em mudança que me impele ao desconhecido, ao não querer agarrar o olhar. Olho a viagem dos outros e a memória vai-se desvanecendo, como água na areia, como a bruma ao sol nascente… sinto o peso da memória, da memória dos outros, da viagem dos outros, dos sonhos dos outros…

Olho, mas não sei se quero olhar…

Procuro…

E continuo a viagem!

Última estação!


Cheguei ao fim da viagem (terei chegado?)!
Última estação, ponto de encontro de sonhos vagabundos, de memórias perdidas, de sentimentos que se fizeram pessoas.
E factos!
Não quero acabar a viagem, mas quero chegar ao fim.
Mas já não sei se quero. Deixo escorrer o sonho. Deixo que as memórias me trespassem, quais espadas de luz e deixo-me rodear de sentimentos que se fizeram pessoas, num burburinho comum ao fim de uma viagem.

Gente que parte, gente que chega, sonhos que deliram em encontros e desencontros.
Espreito. Quero ver a gente que parte e a gente que chega. Na bagagem memórias que levam e que trazem. Pesam-me as memórias, pesam-me os sentimentos, doem-me as feridas provocadas pelas espadas de luz.

A luz mana de mil feridas, arranhões provocados por espinhos com forma humana, demónios de mim. Eu sou o meu demónio principal e corro pela gare, como que vai encontrar os seus.
Será a luz humana?

Olho para a gare. Tão pouca gente vejo. Está quase vazia. Onde está a gente toda que comigo fez a viagem? Onde estão as memórias? E os sentimentos? Será tudo um sonho? Terá sido tudo um sonho?


Acabo a viagem (estarei a iniciar a viagem?)!