sexta-feira, maio 20, 2005

O Rato Roeu a Rolha da Garrafa do Rei d’Angola

Uma das minhas longínquas memórias de infância tem a ver com a minha vó Lisa, que me pedia, de vez em quando, para repetir um trava-línguas infantil. Dizia ela – “Vá João, diz lá, O rato roeu a rolha da garrafa do rei d’Angola”; e eu dizia sempre – “Não é de Angola vó, é da Rússia...”.

Não sei porquê, hoje lembrei-me da minha avó Elisa. Uma camponesa seca de carnes, rústica, cheia de força, uma moira de trabalho. O meu avô Francisco morreu, tinha a minha mãe 17 anos e o meu tio 24 e ela aguentou a família, como sabia, trabalhando. Quando passava férias com ela, lá na aldeia, costumava acordar pelas nove horas e já ela tinha ido à horta, a 4 quilómetros do povo, tinha apanhado uma braçada de lenha pelo caminho e já me tinha feito o pequeno almoço. Mulher simples, até no nome – simplesmente Elisa Maria, sem nome de família, iletrada mas sábia, relembro com saudade os seus carinhos, os seus gestos, as suas palavras, as suas conversas – “Oh vó não é papel ogénico, é higiénico” – “Foi assim que a minha professora me ensinou”. Nunca frequentou a escola, tal como as suas duas irmãs, isso era para os homens, quando era... mas os seus dois irmãos foram oficiais do exército, não era portanto por pobreza, mas por costume. No dia em que entrei para a Faculdade ofereceu-me uma caneta, foi uma das melhores prendas que eu alguma vez recebi. Morreu pouco tempo depois...

Mas devem estranhar este meu desvario lamechas, e perguntam-se porque é que eu falo da minha vó Lisa. É que a minha avó não acreditava que o homem tivesse ido à lua. Eu bem lhe explicava que até tinha visto na televisão, que os meus pais me tinham ido acordar às duas da manhã para eu poder assistir, mas nada. Para ela aquilo era impossível – “Poi pode lá ser João, uma coisa dessas, nã, nã acredito, ninguém pode ir à lua, nem os amaricanos, tás a mangar comigo!” – “É verdade vó, eu vi, deu na televisão”. Mas para ela a televisão não significava nada, não era prova, pois para ser prova era necessário que ela a percebesse. E nunca a consegui convencer, nem com a televisão... E não era das mulheres mais fechadas da aldeia, ainda rapariga tinha conhecido Lisboa, coisa que poucas mulheres na aldeia se podiam gabar e contava-me as histórias destas viagens, do comboio a vapor, de como, quando faltava o carvão, os passageiros desciam e iam à lenha, de como o comboio andava tão devagar que se podia descer, nas margens do Tejo e ir apanhar fruta nalgum pomar... Mas que o homem não tinha ido à lua, isso é que não!!!

Lembrei-me hoje do que ela diria de ver uma guerra pela televisão, Ela que viveu três, a I, a Guerra de Espanha e a II Guerra Mundial, será que iria acreditar nesta do Iraque? Dei comigo a dialogar com ela – “Ó vó, os americanos atacaram o Iraque” – “E o que é lá isso João?” – “É um país que fica lá para os lados da Terra Santa, olhe venha ver, estão a dar imagens, olhe parece que acertaram numa maternidade” – “Pode lá ser!” – “É verdade vó, estão a dar na televisão!” – “Ai João, se fôssemos acreditar no que se diz e no que se vê na televisão, então pode lá ser alguém mandar uma bomba para uma maternidade? Qu´és d’esperto rapaz, estás a mangar comigo...”

Não vó, não estou a mangar consigo, não mangava quando falava consigo acerca da lua e não estou a mangar agora... Está a acontecer, agora, hoje...

Tá bem vó, eu digo – o rato roeu a rolha da garrafa do rei d’Angola – pode ser Angola vó, não faz mal...

Adeus vó, vá dando noticias...