sexta-feira, junho 27, 2014

A vida no autocarro 113



Li, como sempre leio, a frase aos solavancos, equilibrando a mochila nos joelhos e o livro seguro entre as mãos que também seguravam a barra do assento da frente: “Olhem só, à matéria juntou-se a outra matéria, a sopa primeva começou a ficar grumosa. Depois vieram as estrelas, os planetas, organismos celulares, peixes, jornalistas, dinossauros, advogados, mamíferos. Vida, vida.” Quem isto escreveu, foi o Salman Rushdie, no seu livro Fúria. O cenário era um planetário em Nova Iorque, a cidade-cosmos (ou será uma CosmoCidade?).
 Resolvi então contemplar a vida ali, naquele autocarro 113, naquela sopa primeva, também ela grumosa. Afinal o 113 também pode ser um planetário, também ele representa um mundo repleto de vida e é quase perfeito. Pelo menos durante 20 minutos por dia, para lá e meia hora por dia para cá, ele é o meu cosmos, o meu mundo.
Ele, o meu mundo, é um universo de lata e plástico, com entranhas de cubos em aço e tubos de borracha, com óleos, líquidos vários e pequenas explosões. Este universo absorve matérias inertes, mas que mal entram, mal penetram neste mundo, logo se transformam em grumos primevos, grumos da sopa primordial. A pouco e pouco vou conhecendo muitas estrelas e planetas do meu universo, e peixes e jornalistas, dinossáurios, advogados… outros são-me desconhecidos, mas por pouco tempo. Mal entram (mal existem) conheço-os. Depois, quando saem (quando deixam de existir), tornam-se traços da luz memorial que, esbaforidos, correm para outros mundos, outros universos.
Para lá, a viagem faz-se a favor da corrente, é calma, adormecente. Para cá é nervosa, sobressaltada. Para lá ouve-se o silêncio sonolento, entrecortado por algumas conversas ao telemóvel, mas mesmo essas, são mornas, sincopadas. Para cá chora-se, canta-se, fala-se em vozes zangadas, estralhaçadas, ouvem-se os braços, alguns abraços, as pernas nervosas, as cabeças cansadas.
Nesse ciclo-vida, marcado pela cadência das entradas, porque as saídas não contam, há vidas de todas as idades. Os que são planetas, jovens idosos, velhos na flor-da-idade e também as crianças-estrelas, jasmins, cristais de neve. As crianças, essas são chaves, chaves que abrem mundos-outros que fazem parte deste mundo. Ontem, na viagem para cá, entraram duas estrelas. Cada uma delas não terá mais que 4 anos. Entraram, de mão-dada-com-a-sua-mãe-cada-uma-delas. Conhecem-se as duas e eu já as conheço. São presença constante nestas viagens para cá. Talvez andem na mesma escola e mal entram, troam os seus nomes – a Larissa e a Luana – nomes tele-visivos, algo bárbaros para os meus ouvidos romanos. Uma tem pequenas tranças, no cabelo, que terminam numa esfera colorida – como uma bola colorida nas mãos de uma criança, falou o poeta. A outra tem na cabeça, um laçarote, vermelho vibrante, engalanante.
Ontem a Larissa e a Luana quiseram cantar. De um lugar para o outro, as suas vozes elevaram-se acima do ronronar rouco e oleoso do motor e das outras vozes do 113:
- “Come a papa Luana, come a papa”.
- “Não é Luana é Joana, Come a papa Joana come a papa”
- “Come a papa Luana, come a papa”
- “Já diiiisseeeee!!! Não é Luana, é Joana”
- “Come a papa Lua…”
- “Ó mãeeee, olha a Larissa!!!”
-“Meninas, portem-se bem!!!”
E a mãe da Luana ajeitou-a ao colo e continuou a falar com a sua vizinha do lado. E o senhor que ia no banco atrás já fez um olhar de enfado… têm destas coisas as meninas-estrelas do autocarro 113 – já vos disse que a Larissa tem uma esfera colorida na cabeça?
E, afinal, porque há-de ser sempre a Joana a comer a papa? Luana, tu que tens esse laçarote vermelho, porque não podes ser tu a menina-estrela da cantiga do Barata Moura? Um, dois, três, uma colher de cada vez, quatro, cinco, seis… e eu prometo que um dia destes vos conto uma história de reis…

Venteira (Amadora), 2014

quinta-feira, junho 26, 2014

O Salta Barrocas





(aos meus Pais)

O Manel era um rapazote de 7 anos, filho de um pastor, o Francisco Martins, um homem sisudo, mas conhecido e respeitado na aldeia, pelas suas convicções fortes e pelo seu sentido de justiça. Por ter nascido e vivido a sua infância numa quinta, a Quinta da Barroca, na aldeia todos o tratavam por Chico Barroca.  Ainda na Barroca, trabalhando para o seu pai, caseiro da quinta, o Chico cedo se habituou  ao contacto com ovelhas, carneiros e cabras e, rapazote de 16 anos, com provas dadas no conhecimento dos animais, no treino dos seus cães e na coragem de afrontar os já poucos lobos que apareciam na região, aceitou o cargo de pastor da Casa Aragão, a maior casa agrícola daquela zona da Beira Baixa. Esse cargo dava-lhe, para além da magra jorna, os proventos extra da posse de um em cada dez borregos nascidos no rebanho, uns que vendia (negócio feito pelo feitor, quando vendia os da Casa) e mantendo umas 15 ovelhas dentro do rebanho, como suas. Por isso, logo a seguir à tropa (que as sortes lhe foram madrastas) feita em Castelo Branco, no 7º Grupo de Metralhadoras e em Lisboa no Grupo de Baterias de Artilharia a Cavalo, de Queluz, O Chico Barroca pode casar com a Deolinda do Ti Zé Sapateiro, o alvo precoce do seu olhar nas festas da aldeia. Deste casamento nascia então, e por enquanto, o Manel!
É fácil perceber porque é que o filho do Chico era o Manel Barrocas, ou melhor, o M’nel Barrocas, no falar poupado da região. Muitos também lhe chamavam o Salta Barrocas, pela muita “vida” do rapazola (talvez por isso o plural). É que o Manel quieto, só a dormir! Aliás, embora franzino e pequeno para a idade, o rapaz não sabia andar, só sabia correr, saltar, esbracejar, subir às árvores enquanto o diabo esfregava um olho.  Se alguém visse um vulto, em alta velocidade, a subir pelos cabeços, a saltar barrocas, valados e muros, ainda agora entre as estevas, a seguir já a chapinhar nos lameiros, esse vulto era quase de certeza o M’nel Barrocas.
Outra característica do rapazote era o gosto pelas partidas, pregadas aos outros, claro está! Velhos e novos, homens, mulheres e crianças, todos serviam. Poucos na aldeia podiam alardear-se de nunca terem sido mangados pelo Manel Barrocas, após uma partida bem pregada. Até vários (e várias) de outras aldeias que por ali passavam ou na altura das festas de Verão ou da Senhora de Valverde, tinham provado o sentido de humor verruminoso do Manel!
Como a maior parte das crianças da aldeia, também o Manel tinha sido obrigado, desde muito cedo, a trabalhar para a família sobretudo ajudando o seu pai com o rebanho. Entretanto, este ano, tinha entrado para a escola, mas o seu destino não seria o de ali andar muito tempo, com certeza. Talvez fizesse a quarta classe, talvez, até porque a sua mestra, a D. Albertina, não lhe augurava um grande futuro académico – “a modos que tens bicho carpinteiro no corpo, ó alma do diabo!!!”. E tinha! Apesar da pobre Mestra aplicar esta frase a quase todos os seus alunos, desde há muito anos – “ai que esta canalhada me vai levar às portas do cemitério mais cedo do que devia!” – o que é facto é que com o Manel, todos concordavam – o rapaz era mesmo um salta barrocas!

Estamos agora no verão, o M’nel não vai à escola, fica no bardo com o seu pai. Ali faz  aquilo que for preciso – vai com ele ao aprisco todos os dias de manhã e ajuda-o na ordenha, depois volta ao bardo, arrebanha lenha, faz o jantar se a sua mãe não enviou coisa já feita e leva-o aonde o rebanho possa estar. Pela tarde vai à aldeia buscar as onças de tabaco e as mortalhas, o vinho, as vitualhas ou a janta e ceia feitas pela mãe. Quando o pai chega à noitinha, já ele está no bardo, já deu um jeito à choça e acendeu o lume que lhes há-de aquecer a ceia e iluminar o pouco da noite que não passam a dormir. Neste último ano, com a novidade do tempo de escola, só fez as tarefas da tarde, indo até ao bardo depois da escola, abalando logo para casa, antes que a noite o apanhasse no caminho.
A vida de pastor era feita de rituais diários, vindos de tempos imemoriais, passada aqui à volta do bardo.  O recinto era constituído  pelo bardo propriamente dito, um espaço quadrado contido por cancelas, estruturas em madeira que se suportavam umas às outras, e onde as ovelhas passavam a noite, havia ainda a choça, uma estrutura cónica feita de giestas e juncos, onde o pastor passava a noite  e o choço idêntica à choça mas para os cães, auxiliares essenciais do pastor. Quando, dependendo das estações do ano ou de quaisquer outras eventualidades, era necessário levantar o bardo e procurar outro local, um carro de vacas vinha buscar as estruturas, incluindo a choça e o choço, e levá-las para outro sítio. À volta da choça o pastor cavava um rego para evitar a entrada de água, e no chão, um pouco de palha suavizava a dureza da terra.
O Manel hoje levantou-se com o pai e ajudou-o a levar as ovelhas até ao Monte de Calcelos, para a ordenha, uma tarefa diária dos pastores, de manhã e à tarde. Os pastores mais experientes andavam com o rebanho das ovelhas que na altura davam leite, o alavão. O vazio era o rebanho das ovelhas que não podiam ser ordenhadas na altura, seria entregue a um pastor mais novo ou com menos tempo na função. O próprio Manel, a despeito dos seus 7 anos, já tinha, uma vez por outra, tomado conta do vazio. Chegados ao Monte levaram os animais para perto do aprisco, uma estrutura longitudinal, feita de cancelas iguais às do bardo, onde se fazia a ordenha. O aprisco ficava junto á queijaria, onde se fazia o queijo e o requeijão ou a travia como as pessoas da vizinha Alcains chamavam. A ordenha correu célere, mercê do saber-fazer milenar dos pastores. Apesar do seu aspecto franzino, Manel, à medida que estes eram cheios, carregava os pricheiros, as vasilhas de folha para onde o leite era ordenhado e levava-os para a queijaria. Acabada esta tarefa, o petiz foi ao bardo arranjar comida. À noite a mãe viria reforçar as vitualhas. Encontrou-se com o pai na Tapada da Valada e ali jantaram juntos – broa cozida pela mãe e um naco generoso de presunto curado pela sua avó materna, a Josefa (não havia na aldeia mãos melhores para a cura do presunto que as da sua avó), isto acompanhado por uns bons golos de soro que o pai tinha trazido da queijaria. 
A tarde era por conta do Manel. O pai apenas lhe disse para arrebanhar uma pouca de lenha e arrancar algumas giestas para o lume. O Chico estava contente com o filho. Tinha-se portado bem a ajudar com as ovelhas e carregou com os pricheiros que nem gente grande! A tarde hoje seria de descanso para ele, até porque a sua Deolinda hoje traria a ceia já feita. O Manel voltou para o bardo e rapidamente arranjou a lenha, que o sol já apertava e a sesta ao troço de uma árvore já lhe apetecia. Arrancou duas ou três pequenas giestas e reparou numa, enorme, no cimo de um cabeço, onde num buraco do granito, no meio de pedras e terra tinha medrado uma já quase pequena árvore,  com o tamanho suficiente para dois ou três dias de acender o lume. Subiu ao cabeço e, com grande dificuldade, lá a conseguiu arrancar. Ainda caíam pedritas e terra da raiz da giesta quando teve de supetão uma ideia, que logo lhe arrancou um esgar de gozo – com cuidado, voltou a por a giesta no sítio, calcou a terra à sua volta, escondeu bem as raízes e desceu…
Dormiu a sesta, como um justo, deu um jeito à choça, até porque a sua mãe provavelmente passaria a noite com eles e, á tardinha, quando o pai regressou com as ovelhas já novamente ordenhadas, disse-lhe: “ó meu pai, apanhei poucas giestas, mas no cimo daquele cabeço está uma grande. Não tenho é força para a arrancar!” O Chico Barroca, olhou para cima, encolheu os ombros, pensou para ele que o filho bem que podia ter apanhado outras mais pequenas, mas para lhe fazer a vontade, lá subiu ao cabeço. Lá no alto, meteu mão ao troço da giesta e zás, puxou com força! Foi então que, não contando com a falta de resistência do arbusto, o Chico voou, de costas… a sorte dele, ou o azar, é que veio aterrar num silvado, ali mesmo na base do cabeço… levantou-se, contundido, arranhado e danado, com as calças e camisa rasgadas, os braços, as mãos e até a cara  com espinhos – “Ó alma do diacho, agora é que a fizeste boa! Espera que eu já t’apanho, levas uma malha que não vais esquecer nunca!”
O Manel, ele próprio espantado com a forma como a sua matreirice tinha resultado, fugiu a bem fugir! Nessa noite passou fome e mesmo ouvindo a sua mãe a chamá-lo com promessas de perdão e explicando ao marido que aquilo eram coisas da canalhada e que o filho deles tinha muita vida, só isso, ele por ali ficou, perto do bardo mas longe da vara do marmeleiro que o pai com certeza tinha ido buscar ali ao pé do poço do Toino P’zarra… quando veio o sono, dormiu ao troço de uma oliveira, acompanhado pelo Rogante, um cão do pai que lhe tinha apanhado o cheiro,  e dando graças por ser verão!

Venteira (Amadora), 2014