O Salta Barrocas
(aos meus Pais)
O Manel era um rapazote de 7 anos,
filho de um pastor, o Francisco Martins, um homem sisudo, mas conhecido e
respeitado na aldeia, pelas suas convicções fortes e pelo seu sentido de
justiça. Por ter nascido e vivido a sua infância numa quinta, a Quinta da
Barroca, na aldeia todos o tratavam por Chico Barroca. Ainda na Barroca, trabalhando para o seu pai,
caseiro da quinta, o Chico cedo se habituou ao contacto com ovelhas, carneiros e cabras e,
rapazote de 16 anos, com provas dadas no conhecimento dos animais, no treino
dos seus cães e na coragem de afrontar os já poucos lobos que apareciam na
região, aceitou o cargo de pastor da Casa Aragão, a maior casa agrícola daquela
zona da Beira Baixa. Esse cargo dava-lhe, para além da magra jorna, os
proventos extra da posse de um em cada dez borregos nascidos no rebanho, uns
que vendia (negócio feito pelo feitor, quando vendia os da Casa) e mantendo
umas 15 ovelhas dentro do rebanho, como suas. Por isso, logo a seguir à tropa
(que as sortes lhe foram madrastas) feita em Castelo Branco, no 7º Grupo de
Metralhadoras e em Lisboa no Grupo de Baterias de Artilharia a Cavalo, de
Queluz, O Chico Barroca pode casar com a Deolinda do Ti Zé Sapateiro, o alvo
precoce do seu olhar nas festas da aldeia. Deste casamento nascia então, e por
enquanto, o Manel!
É fácil perceber porque é que o filho do
Chico era o Manel Barrocas, ou melhor, o M’nel Barrocas, no falar poupado da
região. Muitos também lhe chamavam o Salta Barrocas, pela muita “vida” do
rapazola (talvez por isso o plural). É que o Manel quieto, só a dormir! Aliás,
embora franzino e pequeno para a idade, o rapaz não sabia andar, só sabia
correr, saltar, esbracejar, subir às árvores enquanto o diabo esfregava um
olho. Se alguém visse um vulto, em alta
velocidade, a subir pelos cabeços, a saltar barrocas, valados e muros, ainda
agora entre as estevas, a seguir já a chapinhar nos lameiros, esse vulto era
quase de certeza o M’nel Barrocas.
Outra característica do rapazote era o
gosto pelas partidas, pregadas aos outros, claro está! Velhos e novos, homens,
mulheres e crianças, todos serviam. Poucos na aldeia podiam alardear-se de
nunca terem sido mangados pelo Manel Barrocas, após uma partida bem pregada.
Até vários (e várias) de outras aldeias que por ali passavam ou na altura das
festas de Verão ou da Senhora de Valverde, tinham provado o sentido de humor
verruminoso do Manel!
Como
a maior parte das crianças da aldeia, também o Manel tinha sido obrigado, desde
muito cedo, a trabalhar para a família sobretudo ajudando o seu pai com o
rebanho. Entretanto, este ano, tinha entrado para a escola, mas o seu destino
não seria o de ali andar muito tempo, com certeza. Talvez fizesse a quarta
classe, talvez, até porque a sua mestra, a D. Albertina, não lhe augurava um
grande futuro académico – “a modos que tens bicho carpinteiro no corpo, ó alma
do diabo!!!”. E tinha! Apesar da pobre Mestra aplicar esta frase a quase todos
os seus alunos, desde há muito anos – “ai que esta canalhada me vai levar às
portas do cemitério mais cedo do que devia!” – o que é facto é que com o Manel,
todos concordavam – o rapaz era mesmo um salta barrocas!
Estamos
agora no verão, o M’nel não vai à escola, fica no bardo com o seu pai. Ali
faz aquilo que for preciso – vai com ele
ao aprisco todos os dias de manhã e ajuda-o na ordenha, depois volta ao bardo,
arrebanha lenha, faz o jantar se a sua mãe não enviou coisa já feita e leva-o
aonde o rebanho possa estar. Pela tarde vai à aldeia buscar as onças de tabaco
e as mortalhas, o vinho, as vitualhas ou a janta e ceia feitas pela mãe. Quando
o pai chega à noitinha, já ele está no bardo, já deu um jeito à choça e acendeu
o lume que lhes há-de aquecer a ceia e iluminar o pouco da noite que não passam
a dormir. Neste último ano, com a novidade do tempo de escola, só fez as
tarefas da tarde, indo até ao bardo depois da escola, abalando logo para casa,
antes que a noite o apanhasse no caminho.
A
vida de pastor era feita de rituais diários, vindos de tempos imemoriais,
passada aqui à volta do bardo. O recinto
era constituído pelo bardo propriamente
dito, um espaço quadrado contido por cancelas, estruturas em madeira que se
suportavam umas às outras, e onde as ovelhas passavam a noite, havia ainda a
choça, uma estrutura cónica feita de giestas e juncos, onde o pastor passava a
noite e o choço idêntica à choça mas
para os cães, auxiliares essenciais do pastor. Quando, dependendo das estações
do ano ou de quaisquer outras eventualidades, era
necessário levantar o bardo e procurar outro local, um carro de vacas vinha
buscar as estruturas, incluindo a choça e o choço, e levá-las para outro sítio.
À volta da choça o pastor cavava um rego para evitar a entrada de água, e no
chão, um pouco de palha suavizava a dureza da terra.
O
Manel hoje levantou-se com o pai e ajudou-o a levar as ovelhas até ao Monte de
Calcelos, para a ordenha, uma tarefa diária dos pastores, de manhã e à tarde.
Os pastores mais experientes andavam com o rebanho das ovelhas que na altura
davam leite, o alavão. O vazio era o rebanho das ovelhas que não podiam ser
ordenhadas na altura, seria entregue a um pastor mais novo ou com menos tempo
na função. O próprio Manel, a despeito dos seus 7 anos, já tinha, uma vez por
outra, tomado conta do vazio. Chegados ao Monte levaram os animais para perto
do aprisco, uma estrutura longitudinal, feita de cancelas iguais às do bardo,
onde se fazia a ordenha. O aprisco ficava junto á queijaria, onde se fazia o
queijo e o requeijão ou a travia como as pessoas da vizinha Alcains chamavam. A
ordenha correu célere, mercê do saber-fazer milenar dos pastores. Apesar do seu
aspecto franzino, Manel, à medida que estes eram cheios, carregava os
pricheiros, as vasilhas de folha para onde o leite era ordenhado e levava-os
para a queijaria. Acabada esta tarefa, o petiz foi ao bardo arranjar comida. À
noite a mãe viria reforçar as vitualhas. Encontrou-se com o pai na Tapada da
Valada e ali jantaram juntos – broa cozida pela mãe e um naco generoso de
presunto curado pela sua avó materna, a Josefa (não havia na aldeia mãos melhores
para a cura do presunto que as da sua avó), isto acompanhado por uns bons golos
de soro que o pai tinha trazido da queijaria.
A
tarde era por conta do Manel. O pai apenas lhe disse para arrebanhar uma pouca
de lenha e arrancar algumas giestas para o lume. O Chico estava contente com o
filho. Tinha-se portado bem a ajudar com as ovelhas e carregou com os
pricheiros que nem gente grande! A tarde hoje seria de descanso para ele, até
porque a sua Deolinda hoje traria a ceia já feita. O Manel voltou para o bardo
e rapidamente arranjou a lenha, que o sol já apertava e a sesta ao troço de uma
árvore já lhe apetecia. Arrancou duas ou três pequenas giestas e reparou numa,
enorme, no cimo de um cabeço, onde num buraco do granito, no meio de pedras e
terra tinha medrado uma já quase pequena árvore, com o tamanho suficiente para dois ou três
dias de acender o lume. Subiu ao cabeço e, com grande dificuldade, lá a
conseguiu arrancar. Ainda caíam pedritas e terra da raiz da giesta quando teve de
supetão uma ideia, que logo lhe arrancou um esgar de gozo – com cuidado, voltou
a por a giesta no sítio, calcou a terra à sua volta, escondeu bem as raízes e
desceu…
Dormiu
a sesta, como um justo, deu um jeito à choça, até porque a sua mãe
provavelmente passaria a noite com eles e, á tardinha, quando o pai regressou
com as ovelhas já novamente ordenhadas, disse-lhe: “ó meu pai, apanhei poucas
giestas, mas no cimo daquele cabeço está uma grande. Não tenho é força para a
arrancar!” O Chico Barroca, olhou para cima, encolheu os ombros, pensou para
ele que o filho bem que podia ter apanhado outras mais pequenas, mas para lhe
fazer a vontade, lá subiu ao cabeço. Lá no alto, meteu mão ao troço da giesta e
zás, puxou com força! Foi então que, não contando com a falta de resistência do
arbusto, o Chico voou, de costas… a sorte dele, ou o azar, é que veio aterrar
num silvado, ali mesmo na base do cabeço… levantou-se, contundido, arranhado e
danado, com as calças e camisa rasgadas, os braços, as mãos e até a cara com espinhos – “Ó alma do diacho, agora é que
a fizeste boa! Espera que eu já t’apanho, levas uma malha que não vais esquecer
nunca!”
O
Manel, ele próprio espantado com a forma como a sua matreirice tinha resultado,
fugiu a bem fugir! Nessa noite passou fome e mesmo ouvindo a sua mãe a chamá-lo
com promessas de perdão e explicando ao marido que aquilo eram coisas da
canalhada e que o filho deles tinha muita vida, só isso, ele por ali ficou, perto
do bardo mas longe da vara do marmeleiro que o pai com certeza tinha ido buscar
ali ao pé do poço do Toino P’zarra… quando veio o sono, dormiu ao troço de uma
oliveira, acompanhado pelo Rogante, um cão do pai que lhe tinha apanhado o
cheiro, e dando graças por ser verão!
Venteira (Amadora), 2014
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