sexta-feira, maio 20, 2005

DEUSES E DIABRETES

Hoje vou falar da minha religião, dos deuses em que acredito, dos mitos que talvez eu tenha inventado… è verdade, os deuses de que vou falar, fui eu que os inventei, fui eu que os criei! Aliás, hoje é a primeira vez que falo nesta religião, a outras pessoas. Sou assim como que um patriarca, embora isso me coloque um problema: Será que para ser um patriarca da religião que eu criei, eu próprio terei que me criar também?

Vou agora apresentar a minha criação. São estes os meus deuses: Or, pai dos deuses e Deus do Absoluto; Ar, companheira de Or, por ele criada, Deusa da Perfeição e da Imaginação; Er, Deusa da Harmonia, nascida da ligação do Absoluto, com a Perfeição; Ir, Deus do Valor e do que é humano; Ur, Deus do Tempo e da Memória; Eri, Deusa da Beleza; Iri, Deusa da Alegria e do Êxtase.

Na mitologia desta religião, Or criou os deuses, ele que existia já no absoluto, no todo que sempre existiu em mim, criou também as coisas, mas porque os outros deuses são também criadores, ele é, então, a criação. Ar procura sempre a perfeição, está sempre perto dela, mas a sua imaginação, está sempre mais à frente! Foi por isso que surgiu Er, quando Or colocou o absoluto, entre a perfeição e a imaginação. Os outros deuses, todos irmãos da harmonia, representam o ciclo da vida. Ir, o valor e o que é humano, pertence ao que é criado. Ele é a essência do que é criado. O tempo e a memória, Ur, enforma esta religião, mas é também ele que a modifica. E o que seria uma religião sem beleza, sem alegria e contemplação, sem Eri e sem Iri? Mas eu também tenho um papel importante nesta religião. Eu sou o espaço, o lugar onde tudo acontece. Eu sou o criador e o criado, é difícil distinguir entre a minha criação e eu próprio. Como destrinçar a matéria da ideia dessa matéria?

Mas na mitologia desta religião, falta falar daqueles a quem eu chamei de diabretes. Os diabretes são meus. Procuram sempre ocupar o espaço, pertencer a outro tempo, têm prazer na procura dos contrários, não são destruidores mas deformam. São engraçados os meus diabretes, se Ir valoriza, logo eles procuram defeitos; se encontram Ar, na sua eterna procura da perfeição, logo eles a tentam fazer parar; quando falam com Er, procuram, sempre, pontos de desequilíbrio no seu discurso; enfim, uns verdadeiros diabretes… Contudo , fazem bem a esta religião, têm nela um lugar próprio. São eles que mantêm o equilíbrio de todo este processo. O seu numero não o sei, nunca os consegui contar.

Para terminar, deixem-me contar um dos mitos desta religião, o mito da memória. Um dia, estava Ur num qualquer tempo, olhando para uma obra de Er. Era de uma harmonia espantosa, carregada de influências de Eri e de Iri. Bela, alegre, divertida… Concerteza Ir não a desprezaria, nem Ar a consideraria longe da perfeição. Ur só tinha que lhe fixar um tempo. Mas como escolher esse tempo e deixar os tempos vindouros sem aquela obra? As hesitações de Ur eram tantas que resolveu pedir ajuda a Or.

À conversa de Ur com Or assistiram os diabretes, que, como era seu hábito, por vezes irritante, se meteram no diálogo entre os dois deuses, cada um apontando uma solução diferente. Para a mesma obra, os diabretes queriam um tempo diferente, propunham uma beleza diferente, uma alegria diferente, um valor diferente, no fundo uma ideia diferente! Mas como, se a obra permaneceria, na sua forma a mesma? Or e Ur já estavam a ficar irritados com as tropelias dos diabretes. Como poderiam eles aceitar, no seio do absoluto, tempos diferentes, que mantinham uma obra na sua essência formal, mas a modificavam na sua essência ideal?

De repente Or e Ur compreenderam o que os diabretes lhes estavam a tentar demonstrar - todos os tempos permanecem no absoluto, todas as obras são geradas num tempo e perpassam os outros tempos, todas as ideias são absorvidas pelos tempos - as ideias são geradas num tempo e ao passarem a outro tempo, transformam-se, mas mantêm a sua essência formal, são agora memória materializada na obra. Pertencem ao absoluto e por isso a sua forma é a mesma, mas nem o tempo escapa aos diabretes. Enquanto os Deuses, por estarem fora do tempo, têm dificuldade em verificar a metamorfose das ideias, porque os tempos mudam. Só os diabretes alcançavam esta possibilidade - a possibilidade da memória - que se não cria, ao menos recria!


Amadora, 98.12.06