sexta-feira, junho 27, 2014

A vida no autocarro 113



Li, como sempre leio, a frase aos solavancos, equilibrando a mochila nos joelhos e o livro seguro entre as mãos que também seguravam a barra do assento da frente: “Olhem só, à matéria juntou-se a outra matéria, a sopa primeva começou a ficar grumosa. Depois vieram as estrelas, os planetas, organismos celulares, peixes, jornalistas, dinossauros, advogados, mamíferos. Vida, vida.” Quem isto escreveu, foi o Salman Rushdie, no seu livro Fúria. O cenário era um planetário em Nova Iorque, a cidade-cosmos (ou será uma CosmoCidade?).
 Resolvi então contemplar a vida ali, naquele autocarro 113, naquela sopa primeva, também ela grumosa. Afinal o 113 também pode ser um planetário, também ele representa um mundo repleto de vida e é quase perfeito. Pelo menos durante 20 minutos por dia, para lá e meia hora por dia para cá, ele é o meu cosmos, o meu mundo.
Ele, o meu mundo, é um universo de lata e plástico, com entranhas de cubos em aço e tubos de borracha, com óleos, líquidos vários e pequenas explosões. Este universo absorve matérias inertes, mas que mal entram, mal penetram neste mundo, logo se transformam em grumos primevos, grumos da sopa primordial. A pouco e pouco vou conhecendo muitas estrelas e planetas do meu universo, e peixes e jornalistas, dinossáurios, advogados… outros são-me desconhecidos, mas por pouco tempo. Mal entram (mal existem) conheço-os. Depois, quando saem (quando deixam de existir), tornam-se traços da luz memorial que, esbaforidos, correm para outros mundos, outros universos.
Para lá, a viagem faz-se a favor da corrente, é calma, adormecente. Para cá é nervosa, sobressaltada. Para lá ouve-se o silêncio sonolento, entrecortado por algumas conversas ao telemóvel, mas mesmo essas, são mornas, sincopadas. Para cá chora-se, canta-se, fala-se em vozes zangadas, estralhaçadas, ouvem-se os braços, alguns abraços, as pernas nervosas, as cabeças cansadas.
Nesse ciclo-vida, marcado pela cadência das entradas, porque as saídas não contam, há vidas de todas as idades. Os que são planetas, jovens idosos, velhos na flor-da-idade e também as crianças-estrelas, jasmins, cristais de neve. As crianças, essas são chaves, chaves que abrem mundos-outros que fazem parte deste mundo. Ontem, na viagem para cá, entraram duas estrelas. Cada uma delas não terá mais que 4 anos. Entraram, de mão-dada-com-a-sua-mãe-cada-uma-delas. Conhecem-se as duas e eu já as conheço. São presença constante nestas viagens para cá. Talvez andem na mesma escola e mal entram, troam os seus nomes – a Larissa e a Luana – nomes tele-visivos, algo bárbaros para os meus ouvidos romanos. Uma tem pequenas tranças, no cabelo, que terminam numa esfera colorida – como uma bola colorida nas mãos de uma criança, falou o poeta. A outra tem na cabeça, um laçarote, vermelho vibrante, engalanante.
Ontem a Larissa e a Luana quiseram cantar. De um lugar para o outro, as suas vozes elevaram-se acima do ronronar rouco e oleoso do motor e das outras vozes do 113:
- “Come a papa Luana, come a papa”.
- “Não é Luana é Joana, Come a papa Joana come a papa”
- “Come a papa Luana, come a papa”
- “Já diiiisseeeee!!! Não é Luana, é Joana”
- “Come a papa Lua…”
- “Ó mãeeee, olha a Larissa!!!”
-“Meninas, portem-se bem!!!”
E a mãe da Luana ajeitou-a ao colo e continuou a falar com a sua vizinha do lado. E o senhor que ia no banco atrás já fez um olhar de enfado… têm destas coisas as meninas-estrelas do autocarro 113 – já vos disse que a Larissa tem uma esfera colorida na cabeça?
E, afinal, porque há-de ser sempre a Joana a comer a papa? Luana, tu que tens esse laçarote vermelho, porque não podes ser tu a menina-estrela da cantiga do Barata Moura? Um, dois, três, uma colher de cada vez, quatro, cinco, seis… e eu prometo que um dia destes vos conto uma história de reis…

Venteira (Amadora), 2014

quinta-feira, junho 26, 2014

O Salta Barrocas





(aos meus Pais)

O Manel era um rapazote de 7 anos, filho de um pastor, o Francisco Martins, um homem sisudo, mas conhecido e respeitado na aldeia, pelas suas convicções fortes e pelo seu sentido de justiça. Por ter nascido e vivido a sua infância numa quinta, a Quinta da Barroca, na aldeia todos o tratavam por Chico Barroca.  Ainda na Barroca, trabalhando para o seu pai, caseiro da quinta, o Chico cedo se habituou  ao contacto com ovelhas, carneiros e cabras e, rapazote de 16 anos, com provas dadas no conhecimento dos animais, no treino dos seus cães e na coragem de afrontar os já poucos lobos que apareciam na região, aceitou o cargo de pastor da Casa Aragão, a maior casa agrícola daquela zona da Beira Baixa. Esse cargo dava-lhe, para além da magra jorna, os proventos extra da posse de um em cada dez borregos nascidos no rebanho, uns que vendia (negócio feito pelo feitor, quando vendia os da Casa) e mantendo umas 15 ovelhas dentro do rebanho, como suas. Por isso, logo a seguir à tropa (que as sortes lhe foram madrastas) feita em Castelo Branco, no 7º Grupo de Metralhadoras e em Lisboa no Grupo de Baterias de Artilharia a Cavalo, de Queluz, O Chico Barroca pode casar com a Deolinda do Ti Zé Sapateiro, o alvo precoce do seu olhar nas festas da aldeia. Deste casamento nascia então, e por enquanto, o Manel!
É fácil perceber porque é que o filho do Chico era o Manel Barrocas, ou melhor, o M’nel Barrocas, no falar poupado da região. Muitos também lhe chamavam o Salta Barrocas, pela muita “vida” do rapazola (talvez por isso o plural). É que o Manel quieto, só a dormir! Aliás, embora franzino e pequeno para a idade, o rapaz não sabia andar, só sabia correr, saltar, esbracejar, subir às árvores enquanto o diabo esfregava um olho.  Se alguém visse um vulto, em alta velocidade, a subir pelos cabeços, a saltar barrocas, valados e muros, ainda agora entre as estevas, a seguir já a chapinhar nos lameiros, esse vulto era quase de certeza o M’nel Barrocas.
Outra característica do rapazote era o gosto pelas partidas, pregadas aos outros, claro está! Velhos e novos, homens, mulheres e crianças, todos serviam. Poucos na aldeia podiam alardear-se de nunca terem sido mangados pelo Manel Barrocas, após uma partida bem pregada. Até vários (e várias) de outras aldeias que por ali passavam ou na altura das festas de Verão ou da Senhora de Valverde, tinham provado o sentido de humor verruminoso do Manel!
Como a maior parte das crianças da aldeia, também o Manel tinha sido obrigado, desde muito cedo, a trabalhar para a família sobretudo ajudando o seu pai com o rebanho. Entretanto, este ano, tinha entrado para a escola, mas o seu destino não seria o de ali andar muito tempo, com certeza. Talvez fizesse a quarta classe, talvez, até porque a sua mestra, a D. Albertina, não lhe augurava um grande futuro académico – “a modos que tens bicho carpinteiro no corpo, ó alma do diabo!!!”. E tinha! Apesar da pobre Mestra aplicar esta frase a quase todos os seus alunos, desde há muito anos – “ai que esta canalhada me vai levar às portas do cemitério mais cedo do que devia!” – o que é facto é que com o Manel, todos concordavam – o rapaz era mesmo um salta barrocas!

Estamos agora no verão, o M’nel não vai à escola, fica no bardo com o seu pai. Ali faz  aquilo que for preciso – vai com ele ao aprisco todos os dias de manhã e ajuda-o na ordenha, depois volta ao bardo, arrebanha lenha, faz o jantar se a sua mãe não enviou coisa já feita e leva-o aonde o rebanho possa estar. Pela tarde vai à aldeia buscar as onças de tabaco e as mortalhas, o vinho, as vitualhas ou a janta e ceia feitas pela mãe. Quando o pai chega à noitinha, já ele está no bardo, já deu um jeito à choça e acendeu o lume que lhes há-de aquecer a ceia e iluminar o pouco da noite que não passam a dormir. Neste último ano, com a novidade do tempo de escola, só fez as tarefas da tarde, indo até ao bardo depois da escola, abalando logo para casa, antes que a noite o apanhasse no caminho.
A vida de pastor era feita de rituais diários, vindos de tempos imemoriais, passada aqui à volta do bardo.  O recinto era constituído  pelo bardo propriamente dito, um espaço quadrado contido por cancelas, estruturas em madeira que se suportavam umas às outras, e onde as ovelhas passavam a noite, havia ainda a choça, uma estrutura cónica feita de giestas e juncos, onde o pastor passava a noite  e o choço idêntica à choça mas para os cães, auxiliares essenciais do pastor. Quando, dependendo das estações do ano ou de quaisquer outras eventualidades, era necessário levantar o bardo e procurar outro local, um carro de vacas vinha buscar as estruturas, incluindo a choça e o choço, e levá-las para outro sítio. À volta da choça o pastor cavava um rego para evitar a entrada de água, e no chão, um pouco de palha suavizava a dureza da terra.
O Manel hoje levantou-se com o pai e ajudou-o a levar as ovelhas até ao Monte de Calcelos, para a ordenha, uma tarefa diária dos pastores, de manhã e à tarde. Os pastores mais experientes andavam com o rebanho das ovelhas que na altura davam leite, o alavão. O vazio era o rebanho das ovelhas que não podiam ser ordenhadas na altura, seria entregue a um pastor mais novo ou com menos tempo na função. O próprio Manel, a despeito dos seus 7 anos, já tinha, uma vez por outra, tomado conta do vazio. Chegados ao Monte levaram os animais para perto do aprisco, uma estrutura longitudinal, feita de cancelas iguais às do bardo, onde se fazia a ordenha. O aprisco ficava junto á queijaria, onde se fazia o queijo e o requeijão ou a travia como as pessoas da vizinha Alcains chamavam. A ordenha correu célere, mercê do saber-fazer milenar dos pastores. Apesar do seu aspecto franzino, Manel, à medida que estes eram cheios, carregava os pricheiros, as vasilhas de folha para onde o leite era ordenhado e levava-os para a queijaria. Acabada esta tarefa, o petiz foi ao bardo arranjar comida. À noite a mãe viria reforçar as vitualhas. Encontrou-se com o pai na Tapada da Valada e ali jantaram juntos – broa cozida pela mãe e um naco generoso de presunto curado pela sua avó materna, a Josefa (não havia na aldeia mãos melhores para a cura do presunto que as da sua avó), isto acompanhado por uns bons golos de soro que o pai tinha trazido da queijaria. 
A tarde era por conta do Manel. O pai apenas lhe disse para arrebanhar uma pouca de lenha e arrancar algumas giestas para o lume. O Chico estava contente com o filho. Tinha-se portado bem a ajudar com as ovelhas e carregou com os pricheiros que nem gente grande! A tarde hoje seria de descanso para ele, até porque a sua Deolinda hoje traria a ceia já feita. O Manel voltou para o bardo e rapidamente arranjou a lenha, que o sol já apertava e a sesta ao troço de uma árvore já lhe apetecia. Arrancou duas ou três pequenas giestas e reparou numa, enorme, no cimo de um cabeço, onde num buraco do granito, no meio de pedras e terra tinha medrado uma já quase pequena árvore,  com o tamanho suficiente para dois ou três dias de acender o lume. Subiu ao cabeço e, com grande dificuldade, lá a conseguiu arrancar. Ainda caíam pedritas e terra da raiz da giesta quando teve de supetão uma ideia, que logo lhe arrancou um esgar de gozo – com cuidado, voltou a por a giesta no sítio, calcou a terra à sua volta, escondeu bem as raízes e desceu…
Dormiu a sesta, como um justo, deu um jeito à choça, até porque a sua mãe provavelmente passaria a noite com eles e, á tardinha, quando o pai regressou com as ovelhas já novamente ordenhadas, disse-lhe: “ó meu pai, apanhei poucas giestas, mas no cimo daquele cabeço está uma grande. Não tenho é força para a arrancar!” O Chico Barroca, olhou para cima, encolheu os ombros, pensou para ele que o filho bem que podia ter apanhado outras mais pequenas, mas para lhe fazer a vontade, lá subiu ao cabeço. Lá no alto, meteu mão ao troço da giesta e zás, puxou com força! Foi então que, não contando com a falta de resistência do arbusto, o Chico voou, de costas… a sorte dele, ou o azar, é que veio aterrar num silvado, ali mesmo na base do cabeço… levantou-se, contundido, arranhado e danado, com as calças e camisa rasgadas, os braços, as mãos e até a cara  com espinhos – “Ó alma do diacho, agora é que a fizeste boa! Espera que eu já t’apanho, levas uma malha que não vais esquecer nunca!”
O Manel, ele próprio espantado com a forma como a sua matreirice tinha resultado, fugiu a bem fugir! Nessa noite passou fome e mesmo ouvindo a sua mãe a chamá-lo com promessas de perdão e explicando ao marido que aquilo eram coisas da canalhada e que o filho deles tinha muita vida, só isso, ele por ali ficou, perto do bardo mas longe da vara do marmeleiro que o pai com certeza tinha ido buscar ali ao pé do poço do Toino P’zarra… quando veio o sono, dormiu ao troço de uma oliveira, acompanhado pelo Rogante, um cão do pai que lhe tinha apanhado o cheiro,  e dando graças por ser verão!

Venteira (Amadora), 2014


sábado, dezembro 28, 2013

O Tropeço

A minha última (e pequena) aventura na ficção. Integrado numa colectânea com outros 72 autores, um conto de Natal, mas em que mais do que o Natal, pretendo contar uma estória da vida difícil de muitos dos portugueses do inicio do século XX. É o segundo volume de uma colecção iniciada em 2012 e onde eu também participei. - João Castela Cravo, O Tropeço. in a.a.v.v., Lugares e Palavras de Natal, 2013l, coord. de João Carlos Brito e Maria Eugenia Ponte. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora.

segunda-feira, novembro 01, 2010

Heróis à Moda de Lisboa

O livro que faltava. Os falares marginais de Lisboa no seu melhor: o "malandrim" lisboeta, a gíria das novas tribos urbanas, os pregões tradicionais, o calão dos becos e ruelas… tudo reunido numa obra única e com muito humor, onde os heróis são todos de Lisboa: desde Ulisses ao cidadão anónimo, passando por Santo António, Marquês de Pombal, Luciano das Ratas ou pela garina do shopping.Se este livro fosse anunciado com os típicos pregões lisboetas, seria assim, certamente:

- Ó freguesa, mexa o cu que, pl'o preço de uma dúzia, leva mais três à borliú...
- Ó viva da Costa, ó pr'a eles a fazer caretas no jardim das tabuletas...
- Olha o rajá fresquinho! É pró bacano e pró bétinho!
- Olhó nogá! Quem perde é quem não está!
- Quentes e boas! Piadas e piadinhas prós meninos e prás meninas...

E porque Lisboa também tem falares e expressões muito suas, para que a paisagem portuguesa não fique a anhar, a freguesa e o freguês (que é como quem diz, o leitor) têm o Dicionário Alfacinha.


Dia 6 de Novembro, pelas 15 horas, no Museu da Cidade (Campo Grande, Lisboa), lançamento do livro, com a presença dos autores!

sábado, dezembro 10, 2005

Doces, tão doces

Doces, eram tão doces os beijos daquele nosso namoro adolescente.
Naqueles fins de tarde de verão, em que sentados na escadaria do velho palacete, eu te contava histórias de filmes de terror que eu tinha visto nos cinemas de Lisboa, para que tu, com medo fingido, ainda te aninhasses mais contra o meu corpo. E eu, abraçava-te ainda com mais força e roubava-te mais um beijo… doce, tão doce.
Sabes, voltei hoje à vila, depois de tantos anos, depois de tantas vidas e quedei-me em frente à escadaria do casarão. Tive medo, tive um pavor enorme que ele já não existisse, que me tremiam as pernas quando desci a rua e entrei no largo. Mas não, ali estava ele, sempre um portento, aquela massa enorme de pedra enegrecida pelos anos. E ali estava a escadaria, aquelas escadas protegidas pela grade de ferros retorcidos. Fui-me sentar no nosso degrau, cúmplice daquele amor de verão, doces recordações de beijos de açúcar e canela. Viajei no tempo, dei-te a mão outra vez, como naquele primeiro dia, o nosso primeiro dia, em que nos encontrámos na fonte e conversámos.
Sabes, a fonte já não existe (eu já não existo), todas as casas têm água corrente, tornou-se inútil e foi destruída. Serão as recordações inúteis? Serei eu uma recordação para ti?
Sabes, vivi, não tenho a certeza se morri, mas já muitas vezes renasci. Como me saberia bem, agora, um daqueles beijos que te furtava, doces, tão doces, como favos de mel. E tu? Existes? Terás por algum momento pensado em nós dois, sentados na escada do casarão velho? Viveste? Terás recordado alguma vez aqueles nossos beijos, quase envergonhados, com sabor a amoras silvestres?
Doces, tão doces eram os nossos beijos…
O casarão, o velho palacete e a sua escada, qual coreto engalanado para uma festa a dois, ainda lá está. Talvez outros ali tenham trocado outros beijos fugidios, mas concerteza, os nossos foram os mais doces…

quinta-feira, outubro 06, 2005

O Nosso Coração Árabe

Tudo se passa em 1064!

Coimbra, a muçulmana, acaba de cair às mãos do moçárabe Sesinando. Ibne Hazm, um dos grandes poetas árabes da Península Ibérica tinha acabado de morrer. Ibne Mucana estava já velho.

Ibne Mucana foi um dos poetas de Lisboa. Nasceu em Alcabideche, entre o final do século X e princípios do XI. Viveu nas cortes dos Abácidas e dos Edricitas de Málaga e dos Aftácidas de Badajoz. Já velho, retirou-se para a aldeia onde nasceu. Terá morrido por volta do final da década de 60.

Estamos em 1064, a reconquista avança, pouco falta para a Batalha de Zalaca, escassos 30 anos faltam para chegar à Península o Cavaleiro Henrique de Borgonha. O texto que se segue foi escrito por várias razões – pode ser entendido como uma recensão (porque não), uma homenagem a um poeta, um mero exercício de escrita (depois da leitura de alguns poemas do “Portugal na Espanha árabe”), etc. No fundo, é uma homenagem a nós próprios, ao nosso coração árabe de que nos esquecemos bastas vezes e que David Lopes, Borges Coelho e Cláudio Torres (entre outros, infelizmente poucos) nos querem fazer lembrar.


Ibne Mucana

“Esta manhã nada nos concedeu.
Mas durante a tarde júbilo e alegria
Deram-lhe a escolher e preferiu beber a tarde
Insistiram mas recusou beber a manhã!

Assim escrevia Ibne Darrague Alcacetali, mais de trinta anos atrás. Ibne Mucana levantou os olhos do livro e fechou-os, antes de os reabrir para observar os bois que, ao longe, lavravam os campos de Alcabideche, neste fim de tarde de Outono.
Abú Zaide Ibne Mucana Alisbuni Alcabdaque sentia-se velho. Já com dificuldade conseguia manejar a podoa com que cortava as silvas. Longe já iam os tempos das cortes de Málaga ou de Badajoz, estava agora na sua aldeia e aí queria morrer… no lugar onde tinha nascido.
A morte! Há pouco tinha recebido a notícia da morte de Ibne Hazm, Ibne Hazm o poeta, Ibne Hazm do “Colar da Pomba”. Há pouco tempo também tinha caído Coimbra às mãos dos perros, que Alá os confunda.
A tarde findava, o vento levantava-se e empurrava as trevas, as velas dos moinhos e a friagem enevoada que vinha da serra. Ibne Mucana devia levantar-se agora e acender a braseira em forma de cúpula que iria aquecer o aposento. Mas ficou sentado de olhos fechados, a beber o fim da tarde em longos sorvos, sonhando com poesias velhas e novas, com poetas velhos e novos… sonhou que era um ginete correndo ao vento, num caminho incendiado pelo fulgor do ouro e da prata, nas margens do Tejo. Sonhou que caçava javalis, que vinham dos descampados destruir as colheitas de cereais, de cebolas, de abóboras. Sonhou que gentis gazelas lhe lambiam o rosto, onde as barbas brancas faziam lembrar a cor das areias do deserto. Ibne Mucana bebeu sôfrego a tarde, como um mancebo de cabelos cor de azeviche bebe o vermelho do vinho novo, generoso, erguendo a taça de vidro à luz do por-do-sol! Quase surdo, os ruídos de quem voltava a casa depois do trabalho nos campos, não o penetravam, mas chegavam-lhe os cheiros, húmidos, da noite regressada… a rosas e a jasmim.
Sentiu a negrura aproximar-se, as estrelas a erguerem-se, a lua a caminhar para ocidente, o fulgor da luz no negro nocturno, como um bando de corvos ornados de gemas brilhantes. A noite caiu! Como estava prestes a cair a verdadeira fé nas Espanhas. E Ibne Mucana continuou o sonho, em que a tarde pede à noite que não se esqueça de dizer ao Almuedine para anunciar a hora da oração.
O poeta acordou já a brisa da manhã trazia o sol escondido atrás de algumas nuvens outonais. Alguém o tinha tapado durante a noite. Sentia-se esfomeado, pois tinha perdido a última refeição do dia. Quando se levantou pareceu-lhe ouvir um sussurro, quase um queixume, que vinha das faldas da serra: “Alisbuni Alcabdaque, breve a tua fé desaparecerá deste lugar e os rios de Espanha chorarão de tristeza, breve os impuros passearão nos adarves das alcáçovas que os filhos do Islão ergueram! Mas tu não viverás para o contar… Alisbuni Alcabdaque, o teu destino é o olvido, mas os teus poemas viverão para sempre em honra de Alá… Alisbuni Alcabdaque, chora, o pranto é sinal de amor, e o seu odor é de Deus criador e incriado…”. As lágrimas deslizaram pelas faces enrugadas do velho poeta, mas a sua alma estava leve, pois compreendia que tudo o que estava a acontecer era vontade de Alá, exaltado seja! Ibne Mucana sentiu o peso da idade, pouco lhe restava para viver, mas que as suas forças não lhe faltassem para manejar a podoa que lhe cortaria as silvas, que Deus não lhe faltasse com o amor da liberdade!

Ousei ser espírito de um árabe, sonhar o que ele podia ter sonhado, quando a sombra nórdica pendia já na direcção do Al-Andaluz. Perdoar-me-ão o arrojo de fazer esta viagem mas, como dizia Ibne Darrague Alcacetali, que Ibne Mucana estava a ler: “não sabes, amiga, que ficar é morrer e que as moradas dos cobardes são túmulos?”.

Ibne Mucana não viveu para ver o que aconteceu, mas muitas lágrimas continuaram a ser derramadas, lágrimas que amassaram o barro que consolidou a nossa História, que permitiu a nossa viagem, que faz parte dos nossos sonhos!

1993

quarta-feira, junho 15, 2005

Olá Vó




Há muito tempo que não falava contigo. E que saudades tenho eu das nossas conversas, sobretudo daquelas à noite, quando eu ia sozinho para Caféde, depois de convencer os meus pais que não te iria maçar. Lembro-me da minha mãe me dizer – “Vê lá João, a avó já está velha, não lhe dês trabalho”. Era mentira, não era vó? A vó nunca foi velha! A minha avó Lisa tinha a força do granito, do granito das paredes da nossa casa, do granito dos cabeços da minha terra.

Não vó, hoje não te venho falar de guerras, embora elas ainda aí estejam. Pois, o homem não mudou e eu tenho dúvidas se ele ainda vai mudar. Mas não te preocupes, continuo a acreditar num mundo melhor e vou fazendo os possíveis para que isso aconteça. Como dizia o Zé Mário Branco, vou pondo um pauzinho na engrenagem, nem que seja através da minha filha. Sim, da Marta, da tua bisneta que nunca conheceste. Acho que consegui que também ela acredite num mundo melhor. Ela é o meu pauzinho, o meu melhor pauzinho. Tu irias gostar muito dela. Sabes, ela ainda conheceu a nossa casa. Ainda lá passou uns dias, antes da casa ser vendida. Era bebé, e passou os dias dentro de água, num verão de grande calor. Lembras-te daquele alguidar grande, de folha, onde tu lavavas a roupa? Foi a “piscina” dela! Ainda hoje ela gosta muito de ir à nossa aldeia.

Mas não era da Marta que eu te queria falar hoje. Estive a ver uma fotografia de Monsanto. Pois, da terra do Zé Paiva. Tu nunca lá quiseste ir, apesar de nós lá irmos todos os verões. Não te davas bem nos carros, dizias tu. Mas como eu estava a dizer, estava a ver essa fotografia e lembrei-me dos cheiros de Caféde. Sei lá porquê, lembrei-me. Lembrei-me do cheiro à tardinha, quando vínhamos os dois do Valado e nos aproximávamos do povo, do cheiro aos lares que se iam acendendo, do cheiro da terra, depois de uma chuvada no final do Verão e, sobretudo, do cheiro do pão quente, saído do forno do Touril da ti Amélia, quando tu me fazias aqueles pássaros de massa de pão, com um bico feito de um pequeno pauzinho…

Desculpa vó, agora não consigo continuar a falar, tenho os olhos cheios de lágrimas, mas um dia destes torno a falar contigo…


Amadora, 29 de Fevereiro de 2004